Sociedade

Pandemia e crise econômica mudam perfil de pessoas em situação de rua

Antes, eram mais homens, negros e solteiros. Em 2021, são famílias inteiras

Imagem: Antonello Veneri
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A criança chupa o dedo envolvida nos braços maternos. Os transeuntes reparam a cena, mas mantêm o passo apressado. Mãe e filha repousam sobre a calçada da Avenida Paulista, em frente a um banco. Ao lado da afetuosa cena, um solitário cartaz: “Por favor, nos ajude a comprar uma boneca”. Do outro lado da via, um homem, duas mulheres e cinco crianças dividem poucos metros quadrados em frente à Igreja São Luís Gonzaga. Pedem esmolas e alimentos. Converso com Fernanda, de 32 anos, uma dessas mães de rua. Morava em Guarulhos, município da Grande São Paulo, e trabalhava com limpeza e faxina. “Com a pandemia, o trabalho, primeiro, diminuiu e, depois, parou de vez. Morava de aluguel, mas agora não tenho mais como pagar. Estou nas ruas há dez dias, talvez eu vá morar com uma sobrinha.”

Em 2019, havia 24,3 mil cidadãos vivendo em albergues ou debaixo das marquises paulistanas. No fim de 2021, eram mais de 31,8 mil, segundo o Censo da prefeitura de São Paulo. Nas demais capitais, não há estudos atualizados. Mas, durante a pandemia, pude documentar o crescimento considerável do número de pessoas em situação de rua em várias delas. Numerosos cartazes nos semáforos e longas filas de espera pelas quentinhas.

Famílias descartadas. Na calçada da Avenida Paulista, uma mãe acalenta a filha adormecida e várias outras disputam esmolas em frente à igreja. Em Salvador, Shirley e Márcio só têm um ao outro – Imagem: Antonello Veneri

A pandemia, que completa dois anos neste mês de março, e a crise político-econômica do País impuseram a rua a quem antes tinha um teto, ainda que frágil. “O sistemático desmonte dos Centros de Atenção Psicossocial do SUS afetou muito as pessoas com sofrimento e transtorno mental”, relata Leonardo Rodrigues da ONG Casa da Sopa, em Fortaleza, reconhecida no Brasil inteiro pelo trabalho com a população de rua.

Sem celular nem acesso à internet, boa parte dos desabrigados sequer conseguiu se cadastrar no site da Caixa

“É evidente que esse crescimento não é apenas por causa da pandemia. Várias medidas atingiram os mais vulneráveis, excluídos até do Auxílio Emergencial. Muitos não têm acesso à internet, não têm e-mail e sequer foram cadastrados no sistema do governo. A exclusão tecnológica aumentou ainda mais a desigualdade”, evidencia Gilcilene Pereira Silva, ­coordenadora da Pastoral do Povo de Rua de Salvador. “O que realmente mudou nestes últimos anos foi o perfil. Antes, quem morava na rua era homem, negro e solteiro. Em 2021, vemos outro perfil, famílias inteiras estão sem teto.”

O problema é que Fernanda, a mãe que dorme na Avenida Paulista, e muitas outras pessoas não entram nas estatísticas oficiais. Leonardo Rodrigues, da ONG Casa da Sopa, com quem colaboro desde 2011, me explica que existem ao menos três perfis que não entram nas estatísticas. O primeiro são os “temporários”, moradores da periferia que migram para o Centro da cidade. “Eles passam de dois a três dias nas ruas, para receber esmolas e comida, e depois voltam para casa”, diz. Existem ainda aqueles que vivem em situação de rua nas periferias e jamais são alcançados pelos pesquisadores. Por fim, há os que moram de aluguel em cubículos, mas se viram nas ruas, olhando carro, vendendo alimentos ou fazendo bicos na feira. Com o lockdown e as ruas vazias, todas essas atividades pararam e os trabalhadores informais ficaram sem renda da noite para o dia. “São pessoas que estão no limiar de vulnerabilidade e, a qualquer movimento da economia, ­caem na rua. Eles não entram na classificação, mas fazem parte.”

Fome. De Norte a Sul do País, ecoa o mesmo grito de socorro – Imagem: Antonello Veneri

O ativista e produtor cultural Marcelo Teles, companheiro de projetos e andanças por Salvador, acrescenta mais um perfil, quem está na rua com “cara de despejo” recente. “São famílias com televisão, tanquinho, sofá e vários pertences nas calçadas. Foram removidos apesar da proibição judicial.” Shirley Bonfim, de 44 anos, e Márcio Santiago, de 34, pertencem a esta categoria: casados há sete anos, perderam o trabalho desde o ano passado e moram numa praça de Salvador com vários pertences da antiga casa (panelas, roupas, ventilador). Grávida de uma menina, ela era cozinheira em um restaurante da orla. Até a terceira onda da Covid, relata, “a gente morava em casa, tinha rotina, geladeira, internet… O restaurante onde eu trabalhava fechou três vezes. Na terceira, não conseguiu voltar. Fomos todos demitidos. Não vou mentir, eu não sou feliz na rua. A minha vida com ele (o marido, ­Márcio) é o que me salva agora”.

Tragédia. A população vivendo nas ruas cresceu a olhos nus – Imagem: Antonello Veneri

A nossa conversa noturna acontece no Comércio, um bairro central de Salvador, que durante o dia ferve de vida e à noite se esvazia. “Por aqui passam ­ONGs, associações e o pessoal da igreja para dar comida. Quem mora na rua depende dos outros. Quando cheguei aqui, em junho, a gente comia o que sobrava dos restaurantes, mas agora estou com medo. Vi um cachorro que comeu os restos e depois morreu. Teve um cara que comeu e também ficou envenenado. Alguém botou vidro moído nas sobras de comida. Morro de medo. Prefiro pegar as quentinhas do pessoal da igreja mesmo.”

O ativista Marcelo Teles faz parte do Coletivo Resistência Preta, que arrecadou milhares de cestas básicas por meio da campanha “Você tem fome de quê?” “Querendo ver o lado positivo disso tudo, houve um grande retorno humano. Muitas pessoas contribuíram com ­doações, especialmente os menos favorecidos. Aqui em Salvador, pelo menos, foi pobre ajudando pobre.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1200 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Fique em casa?”

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