Sociedade

Oscar Niemeyer

Se uma ideia pudesse resumir sua obra, seria a ausência de medo. Nossas cidades parecem, por exemplo, ter medo do vazio

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Aos 104 anos, faleceu Oscar Niemeyer. Nenhum artista brasileiro foi reconhecido, de maneira praticamente unânime por seus pares em todo o mundo, como referência absoluta e incontornável. Nenhum, a não ser Niemeyer. Isso não é acaso nem algo desprovido de relevância.

Não se trata de uma questão de sucesso, mas de consciência da força de sua linguagem e da originalidade de suas escolhas. Com Niemeyer, o modernismo alcançou uma audácia formal, que dificilmente encontrará em arquitetos como Le Corbusier, Walter Gropius, Frank Lloyd Wright ou Mies van der Rohe. Ele foi aonde todos esses nomes maiores, que moldaram a nossa sensibilidade, não conseguiram chegar. Sua vida longa e produtividade constante lhe permitiram ser aquele que levou o modernismo ao extremo, mostrando como poderia ser o portador de uma experiência renovada de liberdade da ideia. Experiência de reconciliação entre a clareza formal de quem seguiu à risca o ensinamento de Adolf Loos (Ornamento e Crime) e a organicidade de quem procura aproximar a arquitetura da imitação da sinuosidade dos gestos humanos.

Por unir clareza e organicidade, suas obras conseguem o feito de ser monumentais e humanas. Mas “humanas” não no sentido daquilo que perpetua as ilusões burguesas do acolhimento da intimidade da home. Acolhimento que parece nos alienar definitivamente na crença de que nosso lugar natural é o espaço privado cheio de memorabilias. “Humanas” no sentido deste desejo humano, demasiadamente humano de retornar aos gestos primordiais e encontrar, neles, uma força construtiva inaudita.

Na verdade, se uma ideia pudesse sintetizar a obra de Niemeyer, talvez fosse a ausência de medo. Nossas cidades parecem ter medo do vazio, dos espaços infinitamente abertos, da visão desimpedida, das formas improváveis que têm a força de dobrar o concreto armado, ou seja, da inventividade que parece se comprazer em negar toda a forma que se põe como necessária. Niemeyer não tinha medo de nada. Quantas vezes ele deve ter exasperado engenheiros que viam suas formas e pensavam: “Mas isso não pode ficar suspenso dessa forma. Mas não é possível deixar isso em pé”. E pur si muove!, como dizia Galileu.

Como se não bastasse a inventividade de sua obra e a coragem de suas escolhas, quis o destino que Niemeyer fosse a expressão artística mais bem-acabada do desejo brasileiro de modernidade. Ele soube dar forma ao desejo de seu país de olhar para dentro de si e romper com o que parecia aprisioná-lo em definitivo no século XIX.

Nesse sentido, há de se pensar em certas correlações próprias ao mundo da arquitetura. Como a mais pública das artes, aquela que mais claramente tem a capacidade de reorganizar a experiência do espaço, a arquitetura parece destinada a nos ensinar como o poder constrói. Não é um acaso, por exemplo, que todos os regimes totalitários tenham sempre se associado, em algum nível, ao neo-classicismo. O mesmo neoclassicismo que coloniza nossas cidades brasileiras atuais com seus empreendimentos imobiliários saídos da cabeça de um Albert Speer, tropical, travestido de construtor de sonhos de opulência da elite local.

Também não é um acaso que tenha sido contra o ­neoclassicismo e os vínculos arquitetônicos coloniais que o desejo de modernidade dos brasileiros se afirmou. Nesse sentido, Brasília, a cidade que Niemeyer construiu, juntamente com Lucio Costa, injustamente incompreendida por setores da sociedade brasileira, foi a expressão de que não há desenvolvimento possível sem o desejo de reinvenção de nossas formas de vida e de reorganização a partir do caráter igualitário da ideia.  Durante certo tempo, tal igualitarismo conseguiu se sustentar. Até que foi definitivamente vencido pela especulação imobiliária e pelo desinteresse do poder público em sustentar tal realidade.

Por isso, gostaria de terminar este texto com uma consideração de ordem pessoal. Vivi em Brasília durante toda a minha infância e, por essa razão, sempre quis um dia agradecer a Oscar Niemeyer pela infância que ele, involuntariamente, me deu. Uma infância sem medo, sem grades, sem muros. Infância de quem cresce diante da imensidão de espaços vazios, capaz de acolher, sem violência, o vazio silencioso da natureza do cerrado. Um espaço de olhares desimpedidos, onde os elevadores davam diretamente para as ruas. Um tempo onde aprendi a beleza da igualdade e o prazer de ver todo espaço como um espaço comum. Ironia suprema: em pleno centro de decisão da ditadura, parecia possível ter uma infância comunista (ao menos no sentido de Niemeyer). Nada estranho para alguém capaz de construir um monumento que estiliza a foice e o martelo (o Memorial JK) nas barbas dos generais da ditadura. Por tudo isso, gostaria apenas de dizer: “Obrigado, Niemeyer. Suas ideias ajudaram a moldar nossas vidas”.

Leia a cobertura completa:

Aos 104 anos, faleceu Oscar Niemeyer. Nenhum artista brasileiro foi reconhecido, de maneira praticamente unânime por seus pares em todo o mundo, como referência absoluta e incontornável. Nenhum, a não ser Niemeyer. Isso não é acaso nem algo desprovido de relevância.

Não se trata de uma questão de sucesso, mas de consciência da força de sua linguagem e da originalidade de suas escolhas. Com Niemeyer, o modernismo alcançou uma audácia formal, que dificilmente encontrará em arquitetos como Le Corbusier, Walter Gropius, Frank Lloyd Wright ou Mies van der Rohe. Ele foi aonde todos esses nomes maiores, que moldaram a nossa sensibilidade, não conseguiram chegar. Sua vida longa e produtividade constante lhe permitiram ser aquele que levou o modernismo ao extremo, mostrando como poderia ser o portador de uma experiência renovada de liberdade da ideia. Experiência de reconciliação entre a clareza formal de quem seguiu à risca o ensinamento de Adolf Loos (Ornamento e Crime) e a organicidade de quem procura aproximar a arquitetura da imitação da sinuosidade dos gestos humanos.

Por unir clareza e organicidade, suas obras conseguem o feito de ser monumentais e humanas. Mas “humanas” não no sentido daquilo que perpetua as ilusões burguesas do acolhimento da intimidade da home. Acolhimento que parece nos alienar definitivamente na crença de que nosso lugar natural é o espaço privado cheio de memorabilias. “Humanas” no sentido deste desejo humano, demasiadamente humano de retornar aos gestos primordiais e encontrar, neles, uma força construtiva inaudita.

Na verdade, se uma ideia pudesse sintetizar a obra de Niemeyer, talvez fosse a ausência de medo. Nossas cidades parecem ter medo do vazio, dos espaços infinitamente abertos, da visão desimpedida, das formas improváveis que têm a força de dobrar o concreto armado, ou seja, da inventividade que parece se comprazer em negar toda a forma que se põe como necessária. Niemeyer não tinha medo de nada. Quantas vezes ele deve ter exasperado engenheiros que viam suas formas e pensavam: “Mas isso não pode ficar suspenso dessa forma. Mas não é possível deixar isso em pé”. E pur si muove!, como dizia Galileu.

Como se não bastasse a inventividade de sua obra e a coragem de suas escolhas, quis o destino que Niemeyer fosse a expressão artística mais bem-acabada do desejo brasileiro de modernidade. Ele soube dar forma ao desejo de seu país de olhar para dentro de si e romper com o que parecia aprisioná-lo em definitivo no século XIX.

Nesse sentido, há de se pensar em certas correlações próprias ao mundo da arquitetura. Como a mais pública das artes, aquela que mais claramente tem a capacidade de reorganizar a experiência do espaço, a arquitetura parece destinada a nos ensinar como o poder constrói. Não é um acaso, por exemplo, que todos os regimes totalitários tenham sempre se associado, em algum nível, ao neo-classicismo. O mesmo neoclassicismo que coloniza nossas cidades brasileiras atuais com seus empreendimentos imobiliários saídos da cabeça de um Albert Speer, tropical, travestido de construtor de sonhos de opulência da elite local.

Também não é um acaso que tenha sido contra o ­neoclassicismo e os vínculos arquitetônicos coloniais que o desejo de modernidade dos brasileiros se afirmou. Nesse sentido, Brasília, a cidade que Niemeyer construiu, juntamente com Lucio Costa, injustamente incompreendida por setores da sociedade brasileira, foi a expressão de que não há desenvolvimento possível sem o desejo de reinvenção de nossas formas de vida e de reorganização a partir do caráter igualitário da ideia.  Durante certo tempo, tal igualitarismo conseguiu se sustentar. Até que foi definitivamente vencido pela especulação imobiliária e pelo desinteresse do poder público em sustentar tal realidade.

Por isso, gostaria de terminar este texto com uma consideração de ordem pessoal. Vivi em Brasília durante toda a minha infância e, por essa razão, sempre quis um dia agradecer a Oscar Niemeyer pela infância que ele, involuntariamente, me deu. Uma infância sem medo, sem grades, sem muros. Infância de quem cresce diante da imensidão de espaços vazios, capaz de acolher, sem violência, o vazio silencioso da natureza do cerrado. Um espaço de olhares desimpedidos, onde os elevadores davam diretamente para as ruas. Um tempo onde aprendi a beleza da igualdade e o prazer de ver todo espaço como um espaço comum. Ironia suprema: em pleno centro de decisão da ditadura, parecia possível ter uma infância comunista (ao menos no sentido de Niemeyer). Nada estranho para alguém capaz de construir um monumento que estiliza a foice e o martelo (o Memorial JK) nas barbas dos generais da ditadura. Por tudo isso, gostaria apenas de dizer: “Obrigado, Niemeyer. Suas ideias ajudaram a moldar nossas vidas”.

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