Sociedade

Os “rolezinhos” e a transformação do capital social brasileiro

Aqueles que atribuem as causas destes encontros ao governo federal do PT estão corretos

"Assusta que as classes C e D comecem a ter poder de compra e almejem os mesmos ambientes das classes A e B"
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Com razão, aqueles que atribuem as causas dos rolezinhos ao governo federal do PT estão corretos. Longe de resumir a alta complexidade envolvida nessas dinâmicas, tanto as manifestações de junho e julho de 2013 quanto os recentes rolezinhos têm sua origem na mesma causa: a tentativa de redescoberta do capital social em um Brasil em transformação. Os programas sociais amplos iniciados no governo Lula da Silva, destinados a diminuir a desigualdade social extrema do nosso país, promoveram a entrada no mercado de consumo de uma parcela da sociedade que, até então, limitava-se aos gastos de sobrevivência típicos de uma sociedade materialista. A inclusão das sociedades C e D na lógica de mercado não apenas é um sinal de mudança radical da conformação social do Brasil, mas também um indicador de momentos de choque com as antigas classes beneficiárias do conforto característico da imobilidade social que aqui vigorava.

Já há muito me inquieta o cenário político brasileiro, em especial da classe média e sua nova guinada conservadora. E, agora, vejo com mais clareza as razões para tal. Ainda vivemos o complexo da casa grande do Gilberto Freyre, e assusta que as classes C e D comecem a ter poder de compra e almejem os mesmos ambientes das classes A e B. Assusta que a senzala queira subir para a casa grande, e é nesse reflexo que venho observando o movimento em direção à direita da classe média do Brasil. Somos (me incluindo na classe média) fruto do milagre econômico dos anos 1960 e 1970, que possibilitou uma melhora na qualidade de vida de parte da classe trabalhadora. Mas essa classe, que melhorou de vida, buscava reproduzir o modelo da antiga casa grande – com suas mini-senzalas (quartinhos de empregada) e suas micro-escravas (empregadas que trabalham muito mais que 8h/dia e ficam felizes em receber um salário mínimo). E é ao ver seu privilégio perdido que essa classe média se desespera. A esquerda brasileira, se quiser reinserir seu espaço nas classes A e B, terá que tomar consciência disso.

A ascensão ao mundo capitalista vivido hoje pelas classes C e D, refletida nas demandas das manifestações do ano passado e nos motivos das convocações dos rolezinhos nas redes sociais, mostra que não existe nada próximo a um “golpe comunista” preparado pelo PT, que alguns meios de comunicação forçam parecer existir. A inserção social atual do Brasil é capitalista, sim, voltada ao consumo e à busca do conforto. E que bom! Não podemos mais ver gentes reclamando que “hoje em dia ninguém mais consegue achar empregada”. Ainda bem! Esse tipo de subserviência servil não existe mais em lugar nenhum do mundo desenvolvido. É, no máximo, uma diarista que vai uma vez na semana, e pronto. E, se quisermos fazer parte de uma sociedade mais justa e desenvolvida, temos que começar alterando nossas relações sociais. O antigo capital social brasileiro se quebrou a partir de 2003 – e, mesmo que vivamos uma alternância de poder no governo federal, o caminho não tem mais volta.

O que falta a todos entender é que a sociedade brasileira está em tal transformação que nada continuará como está – e ninguém, até agora, entende como estão acontecendo os processos transformativos. Se hoje o problema da classe média é não conseguir pagar uma empregada todos os dias e nem cuidar das tarefas domésticas e dos filhos, por conta das altas horas de trabalho, o problema das classes C e D é querer também participar do giro trabalhista e de consumo que as demais classes têm. Após a transição, com mais gente no mercado de trabalho antigo da classe B, a tendência provável é que todos trabalhem menos e se dediquem a cuidar de suas casas e filhos – assim como acontece nos EUA, na Europa, na Oceania. Isso só vai acontecer quando a desigualdade deixar de ser monstruosa e a sociedade brasileira estiver mais preparada para deixar alguns privilégios e passar a usufruir de outros.

Essa transformação não será tranquila, muito menos “lenta, gradual e segura”, como tradicionalmente o brasileiro está acostumado. Até porque ninguém sabe ainda como se colocar nesse Brasil em transformação. O resultado será de um país mais justo e menos casa grande x senzala. Mas, até lá, vai ser difícil convencer as classes A e B que a escravidão residual acabou. Prevejo ainda mais um recrudescimento da guinada à direita da classe média, temerosa pela perda de seus privilégios e cega dos benefícios que esse transformação social irá lhe trazer, e mais manifestações de espaço e inclusão das classes C e D, ainda a descobrirem a forma de se posicionar em um mundo onde elas são ouvidas e têm poder de compra. A única chance de melhoria das tensões dessa transformação é via diálogo aberto e despido de egocentrismos. O espaço final que terá o novo capital social brasileiro terá que ser comum, mas conquistá-lo não será nada simples.

Lucas Pereira Rezende é doutor em Ciência Política (UFRGS), professor de Relações Internacionais (FACAMP) e autor do livro O Engajamento do Brasil nas Operações de Paz da ONU (Ed. Appris, 2012)

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