Sociedade

Os livros ainda podem nos salvar?

A barbarização e a selvageria tiveram na desinformação um dos seus principais aparatos

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2018 entra em sua fase crepuscular e, nessa toada, vai colecionando acontecimentos que fornecem os traços que delineiam o perfil do tormentoso ano. O que colocar em relevo do cipoal de fatos, alguns considerados irrealizáveis até se tornarem realidade? Como analisar as várias questões que (res)surgiram juntas? Qual ângulo escolher para espiar o ano que ainda se desenrola?

Entre as proeminências, podemos mencionar o que vem sendo chamado de guerras culturais que se desenvolveram no líquido amniótico da barbarização conservadora e da selvageria política. Há que se dizer que a barbarização e a selvageria tiveram na desinformação um dos seus principais aparatos.

Não podemos esquecer: invencionices como kit gay, pinto de mamadeira e outras aberrações não foram pormenores isolados e microscópicos, mas se instalaram no coração daquilo que sintetizou o espírito do tempo presente, pontificando o debate público.

Prospectivamente, o que imaginar para 2019? Quais as rotas de fuga que se desenham num horizonte com contornos antipopulares? Como fazer com que a desinformação perca musculatura e construir diques contra o avanço do obscurantismo?

O remédio vem de longa data: educação. Maya Angelou e Theodor Adorno renovaram a prescrição: “a tese que gostaria de discutir é a de que desbarbarizar tornou-se a questão mais urgente da educação hoje em dia. O problema que se impõe nesta medida é saber se por meio da educação pode-se transformar algo de decisivo em relação à barbárie. (…) Considero tão urgente impedir isto que eu reordenaria todos os outros objetivos educacionais por esta prioridade”.

“Homens são lições de outros homens”

Esta linda frase do cantor Gonzaguinha sintetiza o processo educativo a que nós humanos estamos irrevogavelmente submetidos. Aprendemos que a nossa formação se dá por meio de antecedências, de vozes que nos habitam num processo dialógico.

O livro, uma maravilhosa invenção humana, se converteu em um dispositivo indispensável que confere caráter perene a esse processo. De vários formatos e tamanhos, os livros suscitam reflexões referentes ao acesso à obra do mundo, o que se tornou uma inegável pedra de toque.

Nas etapas evolutivas das mídias, o par fixação-mobilidade vem desafiando as formas de transmissão. Há uma diferença entre mídias pesadas e duráveis (pedra e mármore, por exemplo), que se prestam ao armazenamento, e mídias leves (papiro), pensadas para serem facilmente transportáveis, permitindo rápida propagação.

Pedra, mármore e papiro designam funções desempenhadas por mídias contemporâneas, como o papel e os dispositivos móveis – mídias que se tornaram a senha para as disputas pelo reconhecimento que são, ao fim e ao cabo, disputas pela memória. Como se vê, da grafosfera à midiasfera as mudanças não são acessórias, visto que dessas mudanças advém uma nova inteligibilidade instaurada pela linguagem. (Borges, 2015).

Edições Coletivo Aquilombô: um alento emancipatório

Em meio ao contexto infausto do mercado editorial, com grandes livrarias indo à bancarrota, comprometendo, no mesmo movimento, as editoras, livros e leitores resistem às vicissitudes do capital.

Os números são inequívocos: “Apesar da crise econômica em geral, e do varejo em particular, as vendas de livros vão relativamente bem. De acordo com a pesquisa Nielsen/SNEL, as vendas de livro cresceram este ano 3,6% em volume até outubro, em relação o mesmo período do ano passado, e 5,4% em valor. “Não há uma crise de demanda”, afirma Antonio Cestaro, editor dos selos  Alaúde e Tordesilhas.

É nesse ambiente que surge, com pompa e circunstância, as Edições do Coletivo Aquilombô – um empreendimento nativo de Minas Gerais, mas que se vincula ao patrimônio do mundo – que responde à demanda por outros lugares de história que prefiguram outros lugares de memória. As edições surgem num momento oportuno para contribuir no combate à barbárie e à selvageria, perfilando-se às iniciativas de visibilidade de parte significativa da obra do mundo que foi soterrada.

As edições acolhem, com competência técnica e beleza, produções de grupos raciais não hegemônicos, dando a ver saberes subalternizados que laboram para expandir o arquivo do mundo, reinaugurando novas formas de inscrição do humano.

Na ambiência de transparência universal, em que tudo ou quase tudo é absorvido pela lógica digital, as Edições do Coletivo Aquilombô têm a missão de compor um catálogo em que saber e fazer nascem emaranhados, onde corpo, fala e gesto se entrelaçam com os rastros e os traços de uma escritura que não se torna refém de apenas um dispositivo ou suporte de transmissão.

A primeira publicação das Edições, o livro Uma boneca no lixo, de autoria da escritora Cristiane Sobral, é um primor de material que impressiona pela leveza e delicadeza.

Com essa visada, o Coletivo Aquilombô faz cair por terra a falsa oposição entre o oral e escrito, em que o primeiro é sempre visto como modalidade exclusiva dos condenados da terra.

Insisto em lembrar o que já mencionei em outros momentos: a repisada sentença de que a civilização africana e sua descendência assentam-se somente na oralidade mostra-se um essencialismo que reduz ao extremo o dinamismo da produção simbólica do continente.

Um dos principais pensadores africanos, Joseph Ki-Zerbo, assinala que a escrita sempre foi materialidade significante presente em África, e que a oralidade, antes de ser um traço “originário”, é fruto de situações contingenciais, tais como a imposição do nomadismo a tribos e comunidades fixas.

Os registros escritos em África, garantem pesquisadoras(es), perdem-se nas noites do tempo Foucault e Derrida ensinam que foi na África e na China que a escrita não-fonética (aquela que não tem relação com a palavra, com a representação da fala) primeiro se instalou; afirmam, ainda, que o Oriente se ordenou segundo outros fundamentos filosóficos, bem diferentes dos que foram estabelecidos no Ocidente.

Da mesma forma, a escrita hieroglífica egípcia se destacou na Antiguidade, marcada pelo seu caráter não-fonético,ideogramático.

Sob esse ponto de vista, as Edições do Coletivo Aquilombô sinalizam rotas capazes de abrir caminhos de informação, conhecimento e sabedoria sem pactuar com o obscurantismo e a ignorância, xodós de uma certa expressão social que ganhou, espantosamente, legitimidade e força em nosso meio.

Essa tarefa nos leva a outra, que é também pedagógica: trazer a superfície camadas e camadas de uma produção pouco ou nada valorizada por um mercado editorial que agoniza ao pisotear o livro como um valor fundamental para a emancipação humana.

Tal emancipação não se dará sem o reconhecimento autoral daquelas e daqueles que civilizaram boa parte do planeta. Corajosamente, as Edições cumprem uma tarefa que se pode entrever nas palavras poéticas de Aimé Cesaire:

porque não é verdade que a obra do homem está acabada que não temos nada a fazer no mundo que parasitamos o mundo
que basta que marquemos o nosso passo pelo passo do mundo
ao contrário, a obra do homem apenas começou (…) e nenhuma raça possui o monopólio da beleza, da inteligência, da força e há lugar para todos no encontro marcado da conquista e sabemos agora que o sol gira em torno da terra iluminando a parcela fixada por nossa única vontade e que toda estrela cai do céu na terra pelo nosso comando sem limite

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