Política

Os 80 tiros que mataram Evaldo e o inescusável medo da população

O que o projeto de Sérgio Moro que amplia a chance de impunidade para policiais tem a ver com a tragédia ocorrida no Rio?

Evaldo Rosa dos Santos. Foto: Reprodução
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“Eu falei: ali é calmo, ali é nossa área. E eu vi o quartel. Estava protegida, da mesma forma que, quando eu vejo um policial, eu me sinto protegida”, contou Luciana Nogueira, esposa de Evaldo Rosa dos Santos, morto no domingo 7 por agentes do Exército que deram 80 tiros no carro em ele e sua família estavam. O automóvel rumava para um chá de bebê, no Rio de Janeiro.

A viúva não imaginava que sua própria família poderia ser o alvo dos agentes. Em nota, o Exército afirmou que os militares estavam reagindo a um assalto. A Polícia Civil afirmou que “tudo indica” que o veículo foi confundido com o de criminosos. Dez dos 12 agentes que estavam na patrulha em Guadalupe, zona oeste do Rio, foram presos e a investigação será feita pela própria Justiça Militar.

O filho do casal, de apenas 7 anos, e o pai de Luciana também estavam no carro. Uma pessoa que passava pela rua e tentou ajudar foi baleada. Mesmo com a família fora do carro, os agentes não prestaram socorro.

O número de mortes provocadas por policias em abordagens e a letalidade dos próprios agentes de segurança são alarmantes, e não raramente as vítimas nada tem a ver com os crimes. E tudo pode ficar pior.

O projeto de lei anticrime de Sérgio Moro, entregue no Congresso Nacional, é um pacote de iniciativas que alteram o código penal e outras legislações com o objetivo de “estabelecer medidas contra a corrupção, o crime organizado e os crimes praticados com grave violência à pessoa”, segundo o ministro da Justiça.

Um ponto, em especial, abre a possibilidade de que casos como o ocorrido no domingo se tornem mais comuns. Diz o texto de Moro que um agente policial ou de segurança pública que agiu em legítima defesa poderá ter uma eventual condenação reduzida à metade ou não aplicada se “o excesso cometido decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.

Para os movimentos sociais, em especial o movimento negro e entidades que trabalham com segurança pública, o projeto pode aumentar o número de mortes da população periférica e negros e negras, alvos recorrentes desse tipo de ação.

Uma média de 14 mortes por dia

Em 2017, as polícias brasileiras foram responsáveis por 5.144 mortes, uma média de 14 por dia. O número corresponde a um aumento de 20% com relação a 2016. No Estado do Rio de Janeiro, onde Evaldo foi morto, 160 pessoas foram assassinadas por policiais apenas em janeiro, segundo dados oficiais do ISP (Instituto de Segurança Pública), órgão vinculado ao governo estadual. É o maior índice para o mês em 20 anos.

É importante destacar que os dados são subnotificados. Muitas das mortes em confrontos com policiais sequer chegam às delegacias. Entre as relatadas, muitas ficam sem investigação para identificar se os mortos foram vítimas de abusos e excessos das policiais, guardas ou membros do Exército.

Segundo o sociólogo e pesquisador do Laboratório de Análise da Violência (LAV) do Rio de Janeiro, Ignacio Cano, a política em curso, tanto de Bolsonaro quanto do governador Wilson Witzel, é a do extermínio. Algo que seria avalizado pela proposta de Moro. “É um projeto antijurídico e anticivilizatório, porque determina que o juiz deve aplicar a pena pela metade ou pena nenhuma caso o policial alegue que matou por violenta emoção. Cai a ideia do controle de Justiça sobre as condutas sociais aplicadas para todos”, afirma.

Os dados mais recentes disponíveis sobre letalidade de agentes estatais são do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Neste mesmo período foram 367 policiais mortos, 5% a menos do que no ano anterior.

O Brasil tem um histórico de abusos por parte das forças públicas. Como os Crimes de Maio de 2006, nos quais mais de 500 pessoas foram mortas em retaliação aos ataques do Primeiro Comando da Capital –59 vítimas eram agentes policiais.

As principais vítimas são jovens negros

O estudo lançado pelo Fórum de Segurança em 2018 concluiu que homens, negros e jovens são os principais alvos das mortes por policiais. A análise foi feita com base em 3.107 registros de 20 municípios do estado de São Paulo entre 2013 e 2016. No período compreendido pela pesquisa, 67% dos mortos por policiais eram pretos e pardos, e 16% tinham menos de 17 anos. Músico, Evaldo é negro, assim como toda sua família alvejada no domingo.

Ainda sobre o projeto de Moro, o Cano afirma que, se aprovada, a proposta passa a não ser aplicada com isonomia para todos. “Tudo dependerá do juiz, do policial, do cidadão que supostamente está armado. É como uma sociedade pré-estatal em que cada um decide por si e tem que arcar com as consequências.”

E se por um lado as entidades e movimentos sociais denunciam frequentemente os abusos, por outro Moro se respalda nos roteiros dos filmes norte-americanos para justificar suas ideias. No domingo 7, o ministro usou o Twitter, sua mais nova ferramenta de trabalho, para defender o projeto. Fã dos super-heróis da DC Comics e da Marvel, o ex-juiz citou produções cinematográficas feitas em Hollywood para explicar o pacote anticrime.

Na sequência afirmou: “Pois bem, precisamos deixar a lei brasileira mais clara para que agentes policiais no Brasil possam fazer o mesmo”, em referência a grupos de policiais infiltrados em supostas gangues, como nos filmes mencionados.

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