Sociedade

‘Oportunismo e censura’, diz Danilo Gentili sobre pedido de Ministério para tirar filme do ar

Comediante diz que governo Bolsonaro transformou o longa ‘Como se tornar o pior aluno da escola’, acusado por apologia à pedofilia, em ‘cortina de fumaça’

O humorista Danilo Gentili, apresentador do SBT. Foto: Reprodução
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Danilo Gentili jamais imaginou que o filme “Como se tornar o pior aluno da escola”, lançado em 2017 nos cinemas, pudesse causar tanto barulho. Desde que foi inserido no catálogo da Netflix — em fevereiro —, o longa-metragem se tornou alvo de ataques por parte de representantes do governo Bolsonaro, que acusam a produção por apologia do abuso sexual infantil, com base numa cena protagonizada por Fabio Porchat.

Nesta terça-feira 15, uma determinação do Ministério da Justiça e Segurança Pública obriga, em caráter cautelar, que todas as plataformas de streaming suspendam a exibição do filme imediatamente — além da Netflix, as plataformas Globoplay, Telecine, AppleTV, Looke e Google Play o mantêm em seus catálogos. Se a ordem não for cumprida em cinco dias, uma multa diária de R$ 50 mil será aplicada às empresas, de acordo com decisão da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon).

Em entrevista ao GLOBO, Gentili ressalta que a medida têm por objetivo estabelecer o que ele chama de “cortina de fumaça”, para que um assunto irrelevante se sobreponha a problemas de interesse coletivo, como a crescente inflação no país.

“As pessoas não estão contentes com o preço e o andamento das coisas, então é sempre interessante criarem um espantalho pra desviarem o foco”, frisa o comediante. “O que mais explicaria todo esse esforço do gabinete do ódio pra fazer um filme de cinco anos atrás virar pauta em plena segunda-feira de aumento de combustível?”

O trecho destacado nas postagens que criticam o filme com classificação indicativa de 14 anos — algo determinado pelo próprio Ministério da Justiça — mostra o personagem de Porchat assediando sexualmente dois garotos: ele interrompe dois adolescentes que estão discutindo e pede que o masturbem. Gentili, que demonstrou simpatia a Jair Bolsonaro (PL) em 2018, ressalta que a referida cena foi descontextualizada da ficção e frisa que, novamente, ele se tornou alvo de “censura e oportunismo”.

Surpreende-se com essa medida do Ministério da Justiça? Como pretende reagir?

O filme já foi submetido a classificação indicativa na época e está legalmente amparado pelos órgãos competentes. Se estão passando por cima disso, acho que fica claro pra todo mundo que é apenas oportunismo e censura.

Exemplos recentes de obras que foram questionadas pelo governo sem rigor técnico são lidos, por parte classe artística, como uma espécie de “cala a boca”. Qual será a sua postura daqui em diante?

Continuarei fazendo o que sempre fiz. Essa não é a primeira censura oficial que recebo. Aliás, lembro aqui que, quando eu recebi moção de censura no governo anterior (por ofender a ex-senadora Regina Sousa ao dizer que ela parecia a “tia do café”), muitos que hoje estão me censurando diziam defender a liberdade de expressão. Curioso, não?

O argumento utilizado pelo ministro da Justiça e por alguns parlamentares, todos da base governista, é que o filme “Como ser o pior aluno da escola” incita a pedofilia. Como você responderia essa acusação?

Na realidade, o filme vilaniza a pedofilia. Ela está no arquétipo de um vilão hipócrita que se esconde atrás de um discurso politicamente correto e falso moralista. Qualquer pessoa que assistiu ao filme sabe disso. Por isso, um político bolsonarista precisou editá-lo e descontextualizá-lo para enganar as pessoas desavisadas. Todos os que assistiram ao filme inteiro não enxergaram a mesma coisa de quem assistiu apenas essa cena cortada e pulverizada nos grupos de WhatsApp. Aliás , postaram no Twitter um vídeo desse tal político (o deputado estadual André Fernandes, do Republicanos-CE) falando coisas para crianças que são bem piores que o filme, pois ele não fala na posição de vilão fictício e sim como pretenso formador de opinião infanto-juvenil. Você viu?

Quando o filme foi rodado, você pensou que essa passagem do filme (em que o personagem interpretado por Fabio Porchat sugere que dois adolescentes o masturbem) poderia ser alvo de polêmica? Conversou sobre isso com Porchat?

Sou muito grato ao Porchat por ter topado participar do filme. E creio que ele topou porque entendeu a cena. Ele, como ator, sabe que pessoas interpretam papéis, e que ficção não é realidade. Se não fosse assim, certamente Anthony Hopkins estaria preso por homicídio e canibalismo. Eu me lembro que, na época, dei como referência para o Porchat uma cena do filme “Uma família do bagulho” (Gentili manda o link com a cena — veja abaixo). Ninguém nunca a polemizou por entenderem que é apenas uma ficção.

Você já declarou que seu humor “assusta” as pessoas. Por que acha isso?

Não me lembro de ter dito que o meu humor “assusta” as pessoas. O que eu sempre digo é que humor a favor não existe.

Em 2017, quando o filme foi lançado, parte das pessoas que defendem o atual governo celebrou o filme como uma produção “sem mimimi” e com humor politicamente incorreto. Hoje, grande parte dessas mesmas pessoas diz o contrário.

Por ter passado muito patrulhamento e assassinato de reputação, eu sempre tive um forte e incisivo discurso sobre a liberdade de expressão e contra o cancelamento e o politicamente correto. E lembro que eu causava grande incômodo na esquerda por conta disso. Creio que essas pessoas que você citou — que eu nunca fui amigo nem próximo, aliás — quiseram pegar carona na minha popularidade e na força desse meu discurso na época do lançamento do meu filme e saíram postando fotos dizendo que assistiram e gostaram. Hoje, como eu continuei zoando o atual governo da mesma maneira que sempre zoei os governos anteriores, a ordem agora é assassinar a minha reputação.

O deputado Marco Feliciano (PL-SP) apagou um tuíte em que elogiava o filme, à época da estreia. Ele disse que, provavelmente, precisou atender a um telefonema durante a referida cena com Porchat, pois não se lembrava dessa passagem. Como você vê isso?

O cara vai e muda completamente o discurso e a opinião conforme a conveniência. Político é isso aí, qual a novidade? Eu nem tinha visto na época que ele (Marco Feliciano) postou isso. Resta saber se ele mentiu que assistiu ao filme ou mentiu que foi atender ao telefone. Seja o que for, alguém que se diz pastor deveria estar mais atento ao versículo de João 8:44 (o trecho da Bíblia diz: “Vocês pertencem ao pai de vocês, o Diabo, e querem realizar o desejo dele. Ele foi homicida desde o princípio e não se apegou à verdade, pois não há verdade nele. Quando mente, fala a sua própria língua, pois é mentiroso e pai da mentira”).

Acha que o fato de você ter se tornado um crítico do governo Bolsonaro mobiliza as críticas e a ação do Ministério da Justiça pelo “cancelamento” do filme?

Acho que isso só prova que a máquina de assassinato de reputação inaugurada no governo anterior segue firme, forte e turbinada nesse governo. Acredito também que, além de eu ser desafeto por ser um comediante independente, tem sempre a questão da cortina de fumaça. As pessoas não estão contentes com o preço e o andamento das coisas, então é sempre interessante criarem um espantalho pra desviarem o foco. O que mais explicaria todo esse esforço do gabinete do ódio pra fazer um filme de cinco anos atrás virar pauta em plena segunda-feira de aumento de combustível?

Há outros exemplos de produções culturais (filmes, peças, exposições) que foram questionadas, sem rigor técnico, pelo governo Bolsonaro nos últimos anos. Vê uma “guerra cultural” promovida pelo governo? O que estaria por trás disso?

Acho que, quanto mais as coisas mudam, menos as coisas mudam. A censura vai mudando de acordo com a agenda de quem comanda a máquina, mas ela permanece por aí. Como já passei pelas duas, é tudo muito claro pra mim.

Foi o próprio Ministério da Justiça que determinou a classificação etária do filme, em 2017. E a pasta agora reclama disso. Pretende tomar alguma medida junto aos seus advogados?

O filme passou por todos os processos classificatórios oficiais e pegou censura de 14 anos. Creio que o filme tem essa classificação porque as pessoas do órgão competente assistiram ao filme inteiro, e não apenas a uma cena oportunamente editada e compartilhada com o objetivo de tirar proveito político.

Esse caso reacende um debate antigo sobre os limites do humor. Acha que essa discussão tem pertinência?

Qual o limite da música? Qual o limite da poesia? Qual o limite do drama? Qual o limite da ficção? Qual o limite da pintura ? Qual o limite da escultura? Existe pertinência nessas discussões?

Você acha que se excedeu alguma vez numa piada?

Quando estou num show , conto uma piada e ninguém dá risada, aí entendo que errei. Preciso voltar e trabalhá-la de novo. Eu guio o meu trabalho por aí.

No último ano, após uma pesquisa divulgada pelo Movimento Brasil Livre (MBL), surgiram rumores de que você enveredaria para a carreira política. Isso pode acontecer? Ou é algo totalmente descartado por você?

No momento eu tenho piadas melhores que essa pra contar.

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