Sociedade

Ocupação Izidora: o despejo fica mais próximo

Em Belo Horizonte, uma comunidade inteira resiste à desocupação de um terreno que dará lugar a empreendimento imobiliário

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“Lutar, resistir e construir”. As palavras que colorem o muro da casa de Maria da Penha Barreto, uma das primeiras moradoras a chegar à ocupação Izidora, na região norte de Belo Horizonte, falam sobre a batalha das cerca de 30 mil pessoas que vivem no espaço atualmente: o direito à moradia.

A parteira de 58 anos, conhecida como Dona Marta, chegou ao terreno vazio em 2013 com o companheiro e os dois filhos, e acompanhou ao longo desse tempo todas as aflições de quem vive nas comunidades que compõem a ocupação – Rosa Leão, Vitória e Esperança.

“Eu vi tanta gente vindo. Eu vi as pessoas dormindo em casas de lona preta, lembro do barulhão que fazia quando ventava. Depois, foram passando pro madeirite, pra mais tarde poder ver com meus próprios olhos aquele monte de casa se tornando casa de gente, de tijolo. Foi muita conquista e felicidade pra quererem tirar isso de nós”, diz.

O sentimento de medo de um despejo forçado é generalizado na Izidora. A batalha judicial é complexa. De um lado, os proprietários do terreno de 3,5 milhões de metros quadrados querem pôr em prática o contrato milionário firmado com a Construtora Direcional e com a prefeitura para a construção do projeto imobiliário Granja Wernek. 

Do outro, cerca de 8 mil famílias reivindicam seus direitos sociais, previsto no art. 6º da Constituição. Na última semana, o conflito foi apreciado pelo Tribunal Internacional de Despejo, em Quito, capital do Equador, após ser selecionado um dos sete mais significativos do mundo entre 88 casos analisados. 

O Tribunal Internacional dos Despejos é realizado por organizações da sociedade civil para discutir ameaças graves de despejo no mundo. Para Thais Lopes, uma das advogadas de defesa da Izidora, apresentar o conflito neste tribunal tem um forte significado político, por demonstrar a dimensão do caso e deixar claro que ele não está circunscrito aos limites do Brasil. Em breve, o tribunal vai enviar recomendações oficiais de conduta para as Organizações das Nações Unidas (ONU) e para o governo de Minas Gerais. 

A participação dos representantes da Izidora em Quito ocorre em um momento delicado do conflito no Brasil. Por aqui, a reintegração de posse foi determinada pela 6ª Vara de Fazenda Municipal de Belo Horizonte, mas foi suspensa temporariamente em junho do ano passado por uma liminar do Superior Tribunal de Justiça (STJ). A decisão impediu a reintegração devido ao despreparo da Polícia Militar para realizar a operação. 

No dia 28 de setembro deste ano, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), composto por 25 desembargadores, negou o mandado de segurança solicitado pelos advogados de defesa da ocupação que apontava o despreparo do Estado em realizar o despejo com segurança. Agora, caiu a última barreira para a desocupação. 

“Se eu pudesse dizer algo para esses desembargadores, eu diria que não se tem como julgar o que não se conhece. Eles nem mesmo sabem quantos somos nós”, diz Charlene Cristiane Egídio, 35 anos, moradora e líder comunitária da Izidora. 

“Nós construímos aqui não só casas, mas também um bairro, um trabalho coletivo, de solidariedade, de consciência política, sobre os nossos direitos enquanto pessoas, algo raro de se ver. Eu gostaria que antes de condenar, eles tivessem mais próximos dessa nossa realidade”, afirma. 

O projeto da Granja Wernek, de acordo com a Direcional, é destinado à construção de unidades habitacionais do programa Minha Casa Minha Vida – faixas 1 e 2. Segundo os critérios estipulados pelo programa, a construtora receberá 65 mil reais para cada apartamento, sendo que o contrato firmado com a Caixa Econômica Federal é de 8.896 unidades. Os três proprietários das terras seriam acionistas do empreendimento. A defesa da Izidora levantou uma dívida de 7 milhões de reais de IPTU por parte dos donos do terreno. A dívida, segundo Otávio Wernek, um dos proprietários, está em processo de negociação com a prefeitura. 

Enquanto a decisão do último julgamento do TJMG que define como será feito o despejo não for publicada, moradores como Antônio Paulo dos Reis, 56 anos, vivem o medo e a aflição do despejo. “Eu moro aqui sozinho, na minha casa que construí com a ajuda dos meus irmãos. Tomo nove remédios por dia, para pressão, próstata, coração que pago com o benefício do INSS de um salário mínimo que recebo. Se a polícia vier tirar a gente daqui, eu não consigo levar no braço nem a minha própria mala”, desabafa. 

Para Dona Marta, é importante contar ao mundo sobre a Izidora. “Antes de qualquer ameaça, eu queria muito dizer como nós vivemos aqui. Nós batalhamos, mas também festejamos. Ano passado me casei, depois de 29 anos morando com meu companheiro”, diz. “Foi uma grande festa na ocupação. Se casaram oito meninas comigo. Aqui nós vivemos, compartilhamos alegrias. Aqui nós lutamos, ensinamos para as crianças que não somos piores nem melhores do que ninguém. Isso dá força”.  

Cadastro

A ausência do cadastramento oficial das famílias é um dos principais problemas enfrentados por quem vive na ocupação. A Prefeitura de Belo Horizonte, responsável por isso, afirma que realizou a contagem em 2014 por meio da Companhia Urbanizadora da cidade (Urbel), mas não soube informar o número de famílias contabilizadas no local. O governo do estado desconhece esse registro. Os advogados de defesa da Izidora consideram 30 mil pessoas residentes na região, baseados em uma contagem feita pelo Escritório de Integração do Departamento de Arquitetura da PUC Minas.

O arquiteto e pesquisador Tiago Castelo Branco, que está à frente desse cadastramento desde o início da ocupação, explica que esse trabalho foi realizado após um estudo da comunidade. “Chegamos a esse número após conversas assistidas e atentas com quem vive no local, a fim de entender como a Izidora se organiza. Mas, em 2015, com as decisões judiciais que ameaçaram fortemente realizar o despejo, tivemos que nos adiantar e terminar a contagem por meio de um voo de helicóptero minucioso. Eu digo que ali, com toda certeza, existem 30 mil pessoas”, afirma.

Castelo Branco chama a atenção, entretanto, para a necessidade urgente de uma contagem oficial, feita pelo poder público. “Enquanto universidade, entendemos que esse papel não é nosso, e sim da prefeitura, do Estado. O cadastro deve ser feito casa a casa, sem ignorar ninguém. E não de forma atropelada, como a prefeitura fez, supostamente contando as 8 mil famílias em apenas dois dias”, avalia.  

Durante a mesa de negociação, que foi retomada na última semana, após quase um ano paralisada, o Estado se comprometeu a realizar o cadastramento oficial com prioridade nos próximos dias. A coordenadora da mesa de diálogo e negociação do conflito, Lígia Maria Alves, representante do governo estadual, explicou que, nesta semana, será desenhada uma estratégia junto aos representantes da ocupação para a realização da contagem. “Isso era obrigação da prefeitura, mas nós iremos fazer. Vamos tentar que não se retire ninguém enquanto se faz esses cadastros. Mas dependemos também da decisão judicial. Porque decisão judicial se cumpre”, disse.

O risco de que o despejo aconteça sem o cadastro, caso a publicação da decisão ocorra nos próximos dias, existe e causa medo nos moradores. “Se essa contagem for feita depois do despejo, não será uma contagem de pessoas, e sim de corpos”, afirmou Charlene Cristiane Egídio durante reunião da mesa de negociação.

Segundo Thais Lopes, esse receio é justificado pela conduta de tolerância zero adotada pelo Estado com as ocupações em MG. “São 30 mil pessoas. Se a decisão for publicada antes do cadastro, há sim o risco de se violar os direitos dos moradores”, explica.

A alternativa oferecida pelo Estado para as famílias, de acordo com Lígia, será definida após a realização da contagem das famílias. “Vamos fazer o cadastro, ver o perfíl das pessoas. Então, é melhor não trabalhar com números. Não se sabe para onde vão essas pessoas porque não se sabe quantas elas são”.

Durante uma audiência pública nos últimos dias que discutiu as alternativas contra o despejo, Eduardo Bitencourt, professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da PUC Minas, destacou que a solução para essas já está apresentada. “As pessoas já estão ocupadas de forma legítima”, argumentou.

Como se organiza a Izidora

Ao chegar na ocupação, o chão de barro, as casas de alvenaria e a poeira fazem lembrar uma simples cidade do interior, onde os vizinhos se conhecem e as crianças brincam no meio da rua, entre pipas e bicicletas. Com o rápido crescimento das casas nos últimos anos no grande terreno abandonado, a área foi dividida em três. Menos de quatro semanas após as primeiras construções, surgiram as vilas Rosa Leão, Vitória e Esperança.

Sem comprovante de residência, quem vive no espaço enfrenta problemas frequentes para conseguir matrículas em escolas e atendimento em qualquer posto de saúde. Sem endereço fixo, também não é possível mudar a zona eleitoral para uma mais próxima, o que fez com que muitos moradores deixassem de votar no primeiro turno das eleições municipais de Belo Horizonte, devido ao alto custo para se chegar até o local de votação.

O programa do governo federal Luz para Todos dá acesso à energia elétrica para quem vive no local. Por ser uma área considerada pelo poder público como invadida, porém, faltam serviços básicos aos moradores do local, como saneamento básico e serviço de limpeza urbana. Mesmo assim, a organização da comunidade surpreende. Cada uma das vilas tem grupos de coordenação do espaço. Essas associações distribuem os terrenos quando chega gente nova e fiscalizam as áreas de risco, além de representar toda a comunidade frente ao governo na luta contra o despejo.

Durante as assembleias comunitárias realizadas por essas lideranças, as famílias se reúnem para compartilhar informações e promover discussões coletivas. Nessas reuniões, moradores pensam em formas de produzir e cuidar do terreno, além de estratégias para viabilizar espaços comuns, como o centro cultural, igrejas, creches, quadras esportivas e hortas comunitárias.

Segundo Charlene Cristiane Egídio, as assembleias buscam incentivar a consciência política nos ocupantes da Izidora, colocando-os em contato com os direitos de cada um. É também o momento de informar sobre as negociações relacionadas à possível reintegração de posse do terreno, motivo que tira o sono de todos que vivem ali.

De acordo com uma das coordenadoras da associação de moradores, Eliene Veloso, comerciante de 46 anos, as três funcionam como espécies de bairros. “O problema de uma é o problema de todas. Estamos juntos em qualquer luta e nos organizamos para ninguém sofrer. Se tem uma coisa que aprendemos vivendo aqui, foi a resistir”, diz.

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