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O vírus do tigrinho

Além de favorecer o crime organizado, a epidemia das bets representa uma grave ameaça à saúde pública e à economia

O vírus do tigrinho
O vírus do tigrinho
Foto: Bruno Peres/Agência Brasil e PF/SP
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Na noite de terça-feira 10, o motorista de aplicativo Níger Soares, de 38 anos, chegou um pouco mais cedo do trabalho para assistir a Seleção Brasileira jogar contra o Paraguai pelas Eliminatórias da Copa do Mundo. Apaixonado por futebol desde criança, o carioca, com formação em Publicidade, tinha “interesse dobrado” no resultado da partida, pois havia feito uma “fezinha” na vitória da equipe canarinho, que acabou não acontecendo. Há anos, ele luta contra a compulsão por apostas e jogos de azar. Soares não titubeia ao afirmar que a avassaladora chegada das empresas de apostas esportivas online, as chamadas bets, dificultou sua luta contra o vício: “A situação piorou. Tem muita propaganda em tudo quanto é lugar. As pessoas estão ficando endividadas, é muita gente”, afirma, embora prefira não entrar em detalhes sobre sua própria situação financeira.

Soares é um dos 52 milhões de brasileiros que, de acordo com um levantamento feito pelo Instituto Locomotiva, fizeram ou costumam fazer apostas em sites na internet. Apesar de o governo federal ter finalizado o processo de cadastramento das empresas, primeiro passo para concretizar a regulamentação do setor no Brasil, pessoas como ele se veem especialmente vulneráveis às bets e são presas fáceis para outra praga social, o “jogos de cassino online”, que seduzem com a ilusão da riqueza imediata. Entre os apostadores, o mais popular é o caça-níqueis eletrônico Fortune Tiger, conhecido no País como “Jogo do Tigrinho”, que vem sendo letal para pessoas de baixa renda. Segundo a pesquisa, 79% dos que costumam fazer apostas na internet pertencem às classes C, D e E.

Investigações da PF apontam a participação do PCC e do CV no atrativo mercado

Estudos recentes completam o quadro de desafio à saúde pública e à economia nacional. Um deles, do Banco Itaú, mostra que em um período de 12 meses os brasileiros gastaram 68,2 bilhões de reais em apostas online. Outro, encomendado pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL), assustada com o impacto já percebido no mercado varejista, aponta que 86% dos apostadores estão endividados e 64% deles negativados no Serasa. Em um país onde 43% da população afirma não ter segurança financeira, a consultoria PwC do Brasil mostra que hoje, para as duas classes da base da pirâmide social, as apostas já equivalem a 76% das despesas mensais com lazer e cultura e a 5% do que é destinado à alimentação. Pesquisas estão sendo realizadas para mensurar também o impacto das bets e dos tigrinhos no orçamento destinado à educação das famílias brasileiras.

Indutoras do vício e da compulsão, as propagandas ilegais das casas de apostas online são também a porta de entrada para o cometimento de crimes. Neste mês, ganhou destaque no Brasil a prisão pela Polícia Civil de Pernambuco da advogada e influenciadora digital Deolane Bezerra, acusada de criar um site de apostas para lavar dinheiro proveniente do jogo do bicho e de outras atividades do crime organizado. Segundo os investigadores, ao menos 30 milhões de reais foram movimentados pela empresa Esportes da Sorte, da qual Deolane é garota-propaganda.

O dono da bet é Darwin Filho, filho do bicheiro pernambucano Darwin Henrique da Silva, e a sede da empresa fica em Curaçao, paraíso fiscal caribenho a 4 mil quilômetros de distância do Recife. Além da possibilidade de apostas esportivas as mais variadas, o site permite acesso ao onipresente Jogo do Tigrinho. A polícia investiga a entrada do dinheiro do bicho e de outras apostas ilegais na empresa e sua utilização em contratos publicitários e aquisição de imóveis e carros de luxo.

Gusttavo Lima teve bens bloqueados pela Justiça. Deolane Bezerra acabou presa. Neymar e Felipe Neto eram garotos-propaganda de bets. Este último diz estar arrependido – Imagem: Redes sociais

Além de Deolane, que recebia da Esportes da Sorte, segundo as investigações, uma remuneração mensal de 1,6 milhão de reais, a Operação Integration apontou a participação do cantor sertanejo Gusttavo Lima, que teve 20 milhões de reais bloqueados pela Justiça. Sua empresa, a Balada Eventos e Produções, é suspeita de integrar um esquema de lavagem de dinheiro para sites de apostas ilegais. Lima, que foi alvo de denúncias de ­shows superfaturados em cidades pequenas do interior do Brasil durante o governo Bolsonaro, é garoto-propaganda da Vai de Bet, empresa do empresário paraibano José André da Rocha Neto, também envolvido em denúncias de manipulação de resultados em partidas de futebol.

O surgimento dos nomes famosos nas manchetes trouxe de volta a discussão sobre a participação de artistas, atletas ou influenciadores digitais como chamarizes para casas de apostas ­online nem sempre legais. Na semana passada, o apresentador Felipe Neto, que já foi garoto-propaganda do site Blaze ao lado de Neymar, divulgou vídeo em que se diz arrependido de ter feito propaganda para casas de apostas. “É um erro que eu não cometerei mais. Vocês sabiam que as apostas online estão arruinando a vida de milhões de brasileiros? Sete milhões de pessoas estão endividadas por causa das bets. No Reino Unido, 10% das pessoas que sofrem vício de jogo acaba tirando a própria vida”, disse Neto aos seus 46 milhões de seguidores no Youtube.

Embora o papel de garoto-propaganda, por si só, não possa ser considerado um crime, especialistas ouvidos por ­CartaCapital afirmam que influenciadores aliados a práticas criminosas podem ser punidos: “Existem crimes praticados contra a economia popular e ilícitos contra o Código de Defesa do Consumidor que são ilegais e já podem incidir em sanções penais, independentemente da regulação das apostas. Crimes como, por exemplo, veicular propaganda que apresenta um produto fraudado ao qual o consumidor nunca vai ter acesso, lavagem de dinheiro ou propaganda envolvendo menores”, alerta José Francisco Manssur, sócio da CSMV Advogados, ex-assessor especial do ministro Fernando Haddad e um dos elaboradores do plano de regulação das bets apresentado pelo Ministério da Fazenda.

Advogado especialista em bets, ­Raphael Barbieri diz ser preciso diferenciar aqueles influenciadores que promovem o jogo responsável e fazem propaganda para ­sites em processo de licenciamento no ­País daqueles que divulgam o jogo como uma forma de as pessoas obterem altos rendimentos e enriquecerem. “No primeiro caso, os influenciadores atuam como um mecanismo legal de promoção dos ­sites. No segundo, estão atuando de forma ilegal e enganando as pessoas. As apostas devem ser vistas como forma de entretenimento, e não fonte de renda.”

Endividamento atinge 86% dos apostadores, revela pesquisa, a alertar para os impactos do fenômeno no varejo

Os crimes eventualmente cometidos pelas “celebridades”, entretanto, são apenas a face visível de um monstro que vai tomando forma cada vez mais assustadora. Investigações em curso apontam a participação das facções criminosas Comando Vermelho e Primeiro Comando da Capital, além de integrantes da cúpula do jogo do bicho, na expansão do atrativo “mercado” de bets. Em abril, a Polícia Federal prendeu dois parentes de Marcos Willians Camacho, o Marcola, na investigação que apura o envolvimento do PCC com a casa de apostas online Fourbet no Ceará. Em 2021, a PF descobriu um esquema em que Leandro Blumer, dono da casa de apostas Rondo Esportes, baseada em Rondônia, lavava dinheiro oriundo da venda de drogas pelo CV em oito estados brasileiros.

No Rio de Janeiro, a máfia do bicho, que mais tarde virou máfia dos caça-níqueis, agora pode ser chamada também de máfia das bets. Investigação iniciada pelo Ministério Público em 2022 aponta que o capo Rogério de Andrade está por trás da empresa Heads Bet, também com sede em Curaçao. “Nunca mais acharão que estamos fazendo algo ilegal”, chegou a dizer um aliado de Andrade, em conversa interceptada pela polícia. O envolvimento do crime organizado com o mercado de bets, acrescenta a PF, está também na origem da morte do advogado Rodrigo Crespo, executado em fevereiro, em plena luz do dia, na entrada da seção da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro.

Barbieri afirma que os criminosos sempre inovam em seu modus operandi: “Já vimos sites que exploram jogos ilegais, outros que prometem resultados, mas não repassam os lucros obtidos aos apostadores e, agora com o caso desta influenciadora, sites de apostas usados para lavagem de dinheiro oriundo de atividades ilegais”. Responsável pela investigação no caso de Deolane, o delegado Renato Rocha diz que o esquema em Pernambuco serviu para ocultação, lavagem e redistribuição do dinheiro do crime organizado: “Três fases clássicas desse tipo de crime”.

O deputado Zeca Dirceu, do PT, defende restrições à publicidade das bets, semelhantes àquelas que são impostas para a propaganda de cigarros e bebidas alcoólicas – Imagem: Gustavo Bezerra/PT no Senado e Pedro Souza/Atlético Mineiro

O cadastramento feito ­pela Secretaria de Prêmios e Apostas, chefiada por Régis Dudena e subordinada ao Ministério da Fazenda, foi concluído em 20 agosto com o pedido de credenciamento de 113 empresas bet, sendo 40 operadoras estrangeiras. Mesmo com a entrada em vigor da nova regulamentação prevista para o primeiro dia de 2025, novidades ainda podem surgir. O deputado federal Zeca Dirceu, do PT, encomendou aos consultores da liderança do partido na Câmara um estudo para elaborar um projeto de lei para restringir a publicidade das bets, com proibições semelhantes às que existem para anúncios de cigarros e bebidas: “A propaganda do jogo online é tão prejudicial quanto era, no passado, a do cigarro. Está ceifando vidas, tirando dinheiro do arroz e do feijão, endividando famílias. Trata-se de uma epidemia. O Brasil precisa dar um basta a esse descalabro”.

Dirceu diz considerar satisfatória a regulamentação feita pelo governo e aprovada pelo Congresso, mas ressalva que nenhuma regulamentação é estática: “Ela pode ser reavaliada e atualizada. Tem de esperar passar um certo tempo, pois ela pode estar sujeita a correções, a alterações em pequenos detalhes que melhorem a proposta original, definida e adequada para aquele contexto ou aquela realidade”.

Uma das tarefas que se apresenta é dimensionar e combater a infiltração do crime organizado. “No mercado não regulado, era impossível ter qualquer mensuração da participação do crime organizado nas empresas de apostas online. Esperamos que, agora, com as empresas obrigadas a apresentar uma série de documentos e atestados, seja viável separar e manter no mercado brasileiro só as entidades que não estão ligadas a nenhum desses grupos”, diz Manssur. O advogado avalia que o problema enfrentado agora decorreu da omissão do governo anterior: “Entre 2018 e 2022, mesmo tendo uma ordem prevista na Lei 13.756, Bolsonaro não regulou a atividade das apostas no Brasil. O governo atual em apenas um ano supriu essa omissão e estabeleceu uma regulação profunda sobre todos os temas, abordando questões relacionadas ao pagamento de tributos, mas também à propaganda e à lavagem de dinheiro. Agora está endereçando, via Ministério da Saúde, a questão do enfrentamento ao vício em jogo”.

A compulsão por apostas e jogos de azar atinge ao menos 2 milhões de brasileiros

Conhecido como ludopatia, o vício nas apostas é outra enfermidade social que precisa ser prevista e tratada adequadamente no novo arcabouço regulatório. Para o psicólogo clínico Cristiano Costa, uma das cabeças à frente da Empresa Brasileira de Apoio ao Compulsivo (Ebac), nessa doença é impossível adotar uma política de redução de danos como nos casos de adição às drogas. “No transtorno do jogo patológico, existe um vício diferente, que se concentra no comportamento de apostar e que não necessariamente é gerador de danos”. Melhor seria, diz o especialista, uma estratégia para diversificar os modos de obtenção de prazer associado ao risco, bem como de diversão e entretenimento: “Também é necessária muita educação psicoemocional e financeira, já que é uma doença profundamente vinculada ao endividamento”. Segundo estudos da entidade, ao menos 2 milhões de brasileiros sofrem de ludopatia severa.

Findo o cadastramento das bets, a Ebac ficará incumbida de adequar as empresas ao conceito de “jogo responsável” especificado na Portaria 1.231 publicada pela SPA em julho: “A fim de contribuir para o permanente aperfeiçoamento regulatório relativo ao jogo responsável, os agentes operadores de apostas deverão avaliar a possibilidade de obter certificação emitida por organismo que ofereça procedimento de certificação no tema”. Para tanto, a Ebac concederá o certificado ­Compulsafe. “O selo foi criado para informar ao mercado que aquele operador de apostas promove as ações pelo jogo responsável e possui uma área dedicada à proteção e ao atendimento especializado dos apostadores com perfil de risco para dependência e outros problemas associados ao jogo”, diz ­Ricardo Magri, executivo da empresa.

Obter o selo Compulsafe exigirá uma série de adequações por parte das casas de apostas. “Estamos falando de publicar de forma clara sua política própria de jogo responsável, informar aos apostadores os riscos da dependência no momento do cadastro, recusar cadastro de menores de 18 anos, disponibilizar mecanismos para parametrização de limites, definir critérios para bloqueio, exclusão e períodos de pausa, disponibilizar canais de atendimento dedicados ao acolhimento e proteção do jogador. Há uma série de elementos de controle que são de responsabilidade do operador implementar e que serão verificados independentemente para a obtenção do selo”, diz Magri.

José Francisco Manssur e Regis Dudena apresentam caminhos para a regulação do setor – Imagem: Washington Costa/MP e Pablo Valadares/Agência Câmara

CEO da empresa galera.bet, Marcos Sabiá afirma que a certificação ajudará a separar o joio do trigo e a identificar as empresas à margem da lei: “O trigo são empresas que já se preocupam em realizar um tratamento adequado dos dados de seus jogadores, o chamado KYC (know your client), a fim de combater crimes como lavagem de dinheiro e manipulação de resultados, sem descuidar da publicidade adequada; tratando o jogo como diversão e não como enriquecimento, investimento ou geração de renda, ao mesmo tempo que identifica e trata eventuais casos de ludopatia”. Segundo Sabiá, essas empresas estão preocupadas com uma relação de longo prazo com o jogador e isso inclui bom atendimento através de seus SACs e compromissos formais com órgãos como o Conar.

Professor da Unicamp e integrante do Comitê Gestor da Internet no Brasil, Rafael Evangelista avalia que há várias boas propostas em debate: “Elas são necessárias e ajudariam não só na questão da publicidade relativa a jogos, pois várias dessas propostas poderiam contribuir para que houvesse maior responsabilização das plataformas pelos conteúdos que carregam”. Muito se faz referência ao Marco Civil da Internet, diz o especialista, como se ele isentasse as plataformas de responsabilidade sobre os conteúdos: “Mas, a partir do momento em que as plataformas não são intermediários neutros desses conteúdos, elas passam a ser corresponsáveis. O Brasil precisa avançar na legislação e na ação efetiva contra esses anúncios maliciosos”.

Enquanto abundam as boas intenções, a vida para quem está sujeito à maior vulnerabilidade social e sanitária frente ao fenômeno da proliferação dos sites de apostas online segue na incerteza. Enquanto aguarda nova oportunidade para tentar recuperar o dinheiro perdido com o futebol sofrível da Seleção Brasileira e assim garantir o pagamento dos boletos no fim do mês, Níger Soares diz não acreditar nas medidas pelo tal jogo responsável: “Acho que não vai adiantar, porque vai depender muito da vontade dos próprios jogadores. E são as próprias bets que vão ajudar? Seria legal se tivesse mais ajuda, talvez uma política pública mais séria e abrangente para tratar o problema”. Fica a dica. •

Publicado na edição n° 1328 de CartaCapital, em 18 de setembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O vírus do tigrinho’

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