Sociedade

O teatro que acolhe a Cracolândia (e incomoda o poder público)

Símbolo de cultura e acolhimento no centro da capital, o Teatro de Contêiner resiste às tentativas do governo do Estado e da Prefeitura de São Paulo de apagá-lo do mapa

O teatro que acolhe a Cracolândia (e incomoda o poder público)
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Sob o sol da tarde, um simpático gato contorcionista recebe quem chega ao pátio do Teatro de Contêiner, no centro de São Paulo. Crianças brincam no parquinho, vizinhos passeiam com seus cães, artistas preparam o cenário. A rotina, porém, acontece sob ameaça constante: o espaço cultural enfrenta uma implacável perseguição do poder público.

Há quase dois meses, a Guarda Civil Metropolitana invadiu o local para cumprir uma ordem de despejo, um dia antes da data oficial. A operação foi usada como pano de fundo para um evento do governador Tarcísio de Freitas, que anunciaria “o fim da Cracolândia”. A repercussão negativa cancelou a cerimônia, mas não freou a perseguição. “Me remeteu aos piores tempos de uma ditadura, quando teatros eram invadidos e atores ameaçados”, disse Marieta Severo, em vídeo de apoio à Cia Mungunzá, responsável pelo espaço.

O Teatro de Contêiner se consolidou como parte vital do circuito cultural da Luz, ao lado da Pinacoteca e da Sala São Paulo. Sete artistas ergueram ali, em 2017, um “teatro praça”, feito de contêineres, hortas, oficinas, bancos e mesas que acolhem vizinhos e transeuntes. Agora, porém, prefeitura emite ordens de despejo, ignora tentativas de diálogo e pressiona para desocupar o terreno.

A ministra da Cultura, Margareth Menezes, visitou o espaço e se comprometeu a mediar a negociação (Foto: Divulgação)

Para a companhia, trata-se de mais um capítulo do projeto de Tarcísio de Freitas de transferir a sede do governo para os Campos Elísios, empurrando junto a especulação imobiliária.

Após a invasão, a Justiça concedeu liminar garantindo 180 dias de permanência. A prefeitura, no entanto, fixou 60 dias e recorreu. Enquanto o Ministério Público abre investigação contra o prefeito Ricardo Nunes por abuso de poder, a ministra da Cultura, Margareth Menezes, visitou o espaço e prometeu interceder.

A trupe aceita negociar, mas com condições: manter a estrutura de contêineres e garantir estabilidade. O terreno oferecido pela prefeitura, na Rua Helvétia, tem 1.000 metros quadrados. “Estamos pedindo tempo para concluir convênios e desmontar sem sofrer sanções. É o mínimo de dignidade”, explica o produtor Marcos Felipe. O teatro tem programação prevista até o dia 14 de dezembro.

Felipe estranha a guinada repentina da prefeitura. “Nos espanta sermos reconhecidos durante oito anos como parceiros, abrigando diversas políticas públicas, e, de repente, o teatro entrar numa rota de colisão para ser despejado, com seus artistas tratados como bandidos aos olhos do poder público”, lamenta.

Em nota, a prefeitura afirma ter repassado ao grupo “mais de 2,5 milhões de reais em apoio para atividades” e sustenta que “a transferência do teatro permitirá a construção de moradias no local”. Sobre a ação violenta da GCM, alega que a operação tinha como alvo a “desocupação de um imóvel localizado ao lado do teatro, invadido por um grupo de pessoas que utilizava um acesso clandestino feito a partir do terreno do teatro”. Segundo o comunicado, “diante da negativa para a desocupação deste imóvel, foi necessária a intervenção das forças de segurança”.

O Contêiner não é só palco. Seu entorno foi o último destino do chamado “fluxo” da Cracolândia, em meio às recentes operações policiais para impedir a circulação dos usuários de droga pelas ruas do centro. Durante dois anos, a convivência foi pacífica. Mais que palco, o espaço se transformou em abrigo: pessoas em situação de rua, usuários de drogas e vizinhos encontram ali acolhimento em shows, oficinas e peças gratuitas.

Morador de rua desde os 10 anos, Cláudio Rogério, encontrou no Contêiner um sopro de vida. (Foto: Luca Meola)

Cláudio Rogério, 36 anos, é exemplo. Morador de rua desde os 10, encontrou no teatro um ponto de virada. Frequentador desde 2018, integrou a trupe, tornou-se mestre de bateria do Blocolândia –  o bloco de carnaval da Cracolândia, formado por usuários, ativistas e profissionais da Saúde e da Assistência Social – e hoje comemora quatro meses longe do crack. “Querem tirar tudo para fazer prédio. Mas não precisa acabar com a cultura da cidade. Os teatros trazem bem-estar para todo mundo, rico ou pobre”, diz.

Para quem vive na rua, ou em situação de alta vulnerabilidade, passa dias sem tomar um banho, e quase sempre está mal vestido, os teatros, galerias de arte, museus nem sempre estão de portas abertas. É por isso que o Teatro de Contêiner é visto como um lugar seguro e acolhedor. Ana Maria, 47, usuária há anos, também encontrou no espaço uma chance de respiro. Hoje mantém uma rotina que inclui trabalho e estudo – e muito menos tempo na rua, em busca da próxima pedra. Quase todas suas noites são reservadas para apreciar a programação do Teatro de Contêiner.

“Outro dia teve o projeto Entre o Sucesso e a Lama, eu fui em todas as apresentações. Foi bonito ver os meninos no palco”, conta, entusiasmada. A iniciativa, promovida por Edi Rock, dos Racionais, tem fortalecido artistas da Cracolândia com oficinas, formações e a produção de um disco e de shows. O objetivo é abrir caminhos profissionais, gerar inclusão social e empoderar jovens moradores da Cracolândia e da Boca do Lixo.

O despejo ameaça também outro pilar vital para a sobrevivência e a dignidade na Cracolândia: o coletivo Tem Sentimento, que mantém sua oficina de costura no terreno. Fundado por Carmem Lopes, ex-assistente social do programa De Braços Abertos, o grupo emprega 70 mulheres cis e trans em situação de vulnerabilidade. Dali saem roupas, acessórios e as fantasias do Blocolândia. “A gente planta sonho na vida das pessoas”, resume.

Diante da pressão, Carmem aceitou se mudar para Santa Cecília, mas com sabor amargo. “Queria ficar aqui, mas não posso colocar todas em risco.” A nova sede será provisória. A proposta da prefeitura é um contrato de comodato por dois anos, e depois “só Deus sabe”, diz Carmem. “Se a gente pudesse escolher, queríamos regularizar aqui. O Tarcísio não está vendendo as terras devolutas? Então vende pro Tem Sentimento com 90% de desconto”, brinca.

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