Sociedade

O Santo (não) sai de cena

Éramos estudantes e terminávamos nosso trabalho de conclusão de curso quando o ídolo Marcos avisou na entrevista: “Vocês me ajudaram no começo, eu ajudo vocês agora”.

Capa do livro 'São Marcos do Palestra', do jornalista Celso de Campos Jr.
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Estudante, inexperiente, ansioso e cheio de dificuldade para conversar com personalidades sem gaguejar, quebrava a cabeça, com meus amigos Vinicius de Oliveira e Rodolfo Albiero, para terminar um capítulo do nosso trabalho de conclusão de curso num já distante 2005.

Um dos capítulos era sobre trairagem no futebol, ou coisa assim. Tínhamos como base uma lista, e uma pequena história, de jogadores que já ousaram jogar (e saíram vivos) nos dois maiores rivais do futebol paulista: Palmeiras e  Corinthians.

As dificuldades eram enormes. “Alô, é da casa do Viola? Sou estudante de jornalismo, estou fazendo uma reportagem, para a faculdade, sobre ídolos que já vestiram as duas camisas e…”

…E tome gancho na cara.

Na reta final, estávamos no laboratório da faculdade, quando um colega, o Gustavo Villani, o único de nós que já trabalhava em rádio, portanto com “gente grande”, fez uma análise sobre o nosso trabalho. E perguntou: quantos jogadores da ativa tínhamos entrevistado? Precisávamos de um contraponto, disse ele. E seria importante falar também sobre os jogadores que NÃO tiveram a mesma disposição de servir a dois deuses, vestir as duas camisas, beijar o escudo inimigo.

Não era madrugada, mas também não era cedo da noite. Mesmo assim, o Villani sacou o celular e começou a conversar com um tal de “carecão”.

-Você pode conversar com uns colegas meus da faculdade?

Em segundos, jogou o celular para minha mão.

-Fala aí com o Marcos, do Palmeiras.

Tremi. Mas conversei. Durante cerca de dez minutos, Marcos falou sobre identificação com o clube e a torcida, e a importância de ser coerente na vida e na profissão. Para nós, ter uma declaração de alguém como o Marcos era tão importante quanto poder contar com ele no nosso time numa final do campeonato escolar. Quase impensável.

No fim, me atrapalhei todo para agradecer ao goleiro, já campeão do mundo pela seleção e maior ídolo palmeirense da minha geração, que havia se disposto a interromper seja lá o que fazia para falar com um reles estudante, numa entrevista que não lhe renderia sequer chamada de capa no dia seguinte.

Sim, porque ídolo que é ídolo costuma filtrar, via assessoria de imprensa, a sua disponibilidade para dar entrevistas conforme o prestígio do veículo. Marcos, portanto, não ganharia fama nem projeção (que já lhe sobravam) dando entrevistas para uns estudantes àquela altura da sua carreira. Mas ele não era desse mundo, nem de outro, e respondeu quase rindo:

-Fica tranquilo. Vocês da imprensa me ajudaram e me deram espaço quando eu estava no começo da carreira. Hoje eu faço o que posso pra ajudar quem está começando.

Parecia mentira.

Na linha estava o goleiro que foi simplesmente o maior responsável pelas maiores alegrias esportivas que tive na vida. A ponto de me fazer brigar com minha mãe, numa brincadeira em que ela não via graça alguma, quando se queixou da mania de todo palmeirense, o filho inclusive, de se referir ao goleiro como “Santo”.

Católica, apostólica, romana, por pouco não me deserdou ao ouvir os motivos da minha devoção.

“Nenhum santo da igreja me deu um título na vida. O Marcos me deu uma Libertadores e uma Copa do Mundo”.

Que os outros santos me perdoem. Mas, agora que está aposentado, será Marcos quem receberá minhas orações, em busca de novos milagres, direcionadas para o mais alto dos altares, quando o Palmeiras, por alguns instantes, esquecer de tudo o que ele ensinou no martírio em vida.

Um legado de coerência e devoção. De quem soube perdoar e ser perdoado, e que colocou em campo suas maiores virtudes não apenas quando fechou o gol e ergueu a taça, mas quando viu o barco afundar e resolveu ficar, esnobando os milhões do Arsenal, da Inglaterra, e ajudando a nau alviverde a voltar para a primeira divisão.

Foram 530 partidas pelo time em 20 anos.

Se o fim não foi como imaginava – o último título ficou distante, e as vitórias ficaram menos constantes que as contusões e patacoadas de um time que se perde em contradições, e tem se apequenado em campo com os anos – o legado fica.

Há poucas horas, imaginava que a qualquer instante veria Marcos correndo de joelhos à beira do gramado para comemorar, rouco de perder a voz, o terceiro pênalti defendido no mesmo jogo (ao longo da carreira, foram 33 penalidades defendidas). Porque só ele era capaz.

Como só ele era capaz de sorrir quando falhava, de brincar com a situação (quase sempre delicada) do time, de brigar quando a coisa saía da linha, e colocar o status de ídolo em risco por conta da própria sinceridade, que tantas vezes me fez rir em suas entrevistas – muito por causa do seu jeito caipira de Oriente, cidade do interior de São Paulo -, e que ganhou a simpatia de todas as torcidas, mesmo sem jamais ter vestido uma camisa rival.

Se, com a idade, o corpo pede passagem, o espírito permanece. Como um santo, de quem o exemplo está lá, num altar, pedindo para ser lembrado, copiado, reproduzido. Vivo, portanto. Agora para sempre.

Valeu, Marcão. (e, dessa vez, sem gaguejar).

Estudante, inexperiente, ansioso e cheio de dificuldade para conversar com personalidades sem gaguejar, quebrava a cabeça, com meus amigos Vinicius de Oliveira e Rodolfo Albiero, para terminar um capítulo do nosso trabalho de conclusão de curso num já distante 2005.

Um dos capítulos era sobre trairagem no futebol, ou coisa assim. Tínhamos como base uma lista, e uma pequena história, de jogadores que já ousaram jogar (e saíram vivos) nos dois maiores rivais do futebol paulista: Palmeiras e  Corinthians.

As dificuldades eram enormes. “Alô, é da casa do Viola? Sou estudante de jornalismo, estou fazendo uma reportagem, para a faculdade, sobre ídolos que já vestiram as duas camisas e…”

…E tome gancho na cara.

Na reta final, estávamos no laboratório da faculdade, quando um colega, o Gustavo Villani, o único de nós que já trabalhava em rádio, portanto com “gente grande”, fez uma análise sobre o nosso trabalho. E perguntou: quantos jogadores da ativa tínhamos entrevistado? Precisávamos de um contraponto, disse ele. E seria importante falar também sobre os jogadores que NÃO tiveram a mesma disposição de servir a dois deuses, vestir as duas camisas, beijar o escudo inimigo.

Não era madrugada, mas também não era cedo da noite. Mesmo assim, o Villani sacou o celular e começou a conversar com um tal de “carecão”.

-Você pode conversar com uns colegas meus da faculdade?

Em segundos, jogou o celular para minha mão.

-Fala aí com o Marcos, do Palmeiras.

Tremi. Mas conversei. Durante cerca de dez minutos, Marcos falou sobre identificação com o clube e a torcida, e a importância de ser coerente na vida e na profissão. Para nós, ter uma declaração de alguém como o Marcos era tão importante quanto poder contar com ele no nosso time numa final do campeonato escolar. Quase impensável.

No fim, me atrapalhei todo para agradecer ao goleiro, já campeão do mundo pela seleção e maior ídolo palmeirense da minha geração, que havia se disposto a interromper seja lá o que fazia para falar com um reles estudante, numa entrevista que não lhe renderia sequer chamada de capa no dia seguinte.

Sim, porque ídolo que é ídolo costuma filtrar, via assessoria de imprensa, a sua disponibilidade para dar entrevistas conforme o prestígio do veículo. Marcos, portanto, não ganharia fama nem projeção (que já lhe sobravam) dando entrevistas para uns estudantes àquela altura da sua carreira. Mas ele não era desse mundo, nem de outro, e respondeu quase rindo:

-Fica tranquilo. Vocês da imprensa me ajudaram e me deram espaço quando eu estava no começo da carreira. Hoje eu faço o que posso pra ajudar quem está começando.

Parecia mentira.

Na linha estava o goleiro que foi simplesmente o maior responsável pelas maiores alegrias esportivas que tive na vida. A ponto de me fazer brigar com minha mãe, numa brincadeira em que ela não via graça alguma, quando se queixou da mania de todo palmeirense, o filho inclusive, de se referir ao goleiro como “Santo”.

Católica, apostólica, romana, por pouco não me deserdou ao ouvir os motivos da minha devoção.

“Nenhum santo da igreja me deu um título na vida. O Marcos me deu uma Libertadores e uma Copa do Mundo”.

Que os outros santos me perdoem. Mas, agora que está aposentado, será Marcos quem receberá minhas orações, em busca de novos milagres, direcionadas para o mais alto dos altares, quando o Palmeiras, por alguns instantes, esquecer de tudo o que ele ensinou no martírio em vida.

Um legado de coerência e devoção. De quem soube perdoar e ser perdoado, e que colocou em campo suas maiores virtudes não apenas quando fechou o gol e ergueu a taça, mas quando viu o barco afundar e resolveu ficar, esnobando os milhões do Arsenal, da Inglaterra, e ajudando a nau alviverde a voltar para a primeira divisão.

Foram 530 partidas pelo time em 20 anos.

Se o fim não foi como imaginava – o último título ficou distante, e as vitórias ficaram menos constantes que as contusões e patacoadas de um time que se perde em contradições, e tem se apequenado em campo com os anos – o legado fica.

Há poucas horas, imaginava que a qualquer instante veria Marcos correndo de joelhos à beira do gramado para comemorar, rouco de perder a voz, o terceiro pênalti defendido no mesmo jogo (ao longo da carreira, foram 33 penalidades defendidas). Porque só ele era capaz.

Como só ele era capaz de sorrir quando falhava, de brincar com a situação (quase sempre delicada) do time, de brigar quando a coisa saía da linha, e colocar o status de ídolo em risco por conta da própria sinceridade, que tantas vezes me fez rir em suas entrevistas – muito por causa do seu jeito caipira de Oriente, cidade do interior de São Paulo -, e que ganhou a simpatia de todas as torcidas, mesmo sem jamais ter vestido uma camisa rival.

Se, com a idade, o corpo pede passagem, o espírito permanece. Como um santo, de quem o exemplo está lá, num altar, pedindo para ser lembrado, copiado, reproduzido. Vivo, portanto. Agora para sempre.

Valeu, Marcão. (e, dessa vez, sem gaguejar).

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