Sociedade

O primeiro andar

Recém-chegada a São Paulo, a mulher não escondia o pânico diante da escada rolante da rodoviária. Ou do mundo que acabava de se abrir para ela

Recém-chegada a São Paulo, a mulher não escondia o pânico diante da escada rolante na rodoviária. Ou do mundo que acabava de se abrir para ela em SP. Foto: Cesar Cardoso/Flickr
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Não me lembro quando usei escada rolante pela primeira vez. Provavelmente foi em alguma loja em companhia de meus tios e avós em Campinas, onde eles moraram até o final dos anos 80.

Era criança e, nessas visitas, ficava impressionado com o ritmo da cidade, a maior do interior paulista. Na frente do prédio, havia um parque que, anos depois, deu lugar a um terminal rodoviário. No topo tinha também um mega-anúncio da Coca-Cola, e luzes que só se apagavam na manhã seguinte. Perto dali, imensas lojas de departamento – com escadas rolantes, elevadores e anúncios num sistema interno de rádio que me lançavam sem paraquedas a algum episódio da família Jetsons.

Achava impossível que houvesse cidade maior que aquela. Até me dizerem que, perto dali, havia uma ainda maior. Chamava-se São Paulo.

Era como um mito: durante muito tempo, a capital paulista e o planeta Júpiter tinham, para mim, as mesmas proporções, distâncias e significados. Era algo que sabia que existia, mas que nunca imaginei alcançar.

Passado algum tempo, conheci a tal cidade em excursões escolares. E fui me abrigar nela, para estudar e trabalhar, muitos anos depois. Mas alcançá-la nunca devo ter alcançado. Nem entendido.

Como um estrangeiro, não sabia andar na rua sem cumprimentar nem ser cumprimentado. E sentia frio na barriga toda vez que as portas do metrô se fechavam. Achava curioso ver as pessoas inventando o que fazer nos longos minutos de silêncio em que se enfiavam num tubo subterrâneo, evitando olhares entre desconhecidos tão próximos. Até bula de remédio servia como distração.

Parecia falta de hospitalidade, mas não era: apesar de certa rudez no trato, posso dizer que jamais conheci pessoas tão dispostas a colaborar, seja no trânsito, seja no trabalho ou até mesmo para apresentar ao visitante o melhor lugar que serve a melhor iguaria.

Se havia algum sentido para a expressão “educação pela pedra” ela estava escancarada nas ruas de São Paulo.

Em poucos dias, o trajeto estava absorvido. As pernas andavam sozinhas entre uma estação e outra, e andar de escada rolante se tornou tão ordinário quanto a ação involuntária de respirar.

Por isso soou tão estranho, ao desembarcar em São Paulo nesta segunda-feira 9, testemunhar o espanto de uma mulher diante da escada rolante da estação Tietê. Mulher simples, de traços rudes e vestes sem cores, ela praticamente estancou sozinha o fluxo da rodoviária ao vacilar diante do primeiro degrau. Estava em pânico diante da escadaria.

Ao lado, uma acompanhante, que parecia filha ou irmã mais nova, tentava puxá-la pelo braço, acudindo que estava em segurança.

Como?

Como estar em segurança com aquele ziguezague interminável, gente bufando em seu cangote por fechar a entrada da escadaria? Como, com aqueles corredores de vozes e alto-falantes?

Como, com tantas buzinas e freios alucinados berrando a poucos metros dali?

De onde estava, fiquei espiando o desfecho da empreitada. Pude ver que a mulher seguia parada, e ria, um sorriso de quem tem medo. E de quem se envergonha da própria condição: de onde vinha, e não se sabe de onde vinha, talvez a vida fosse menos eletrificada, menos sólida, menos enclausurada. Podia andar em paz sem ter a sensação de ser engolida.

Mas estava lá por algum motivo, talvez por causa da mesma lei da física cantada por Belchior ao descrever sua chegada à mesma cidade, muitas anos antes dela e de mim: “Pois o que pesa no norte, pela lei da gravidade, disso Newton já sabia, cai no sul, grande cidade”.

Talvez fosse apenas uma visitante, com data de chegada e partida.

Ou talvez não fosse a escada que causasse o espanto, mas o mundo diante dela que acabava de se abrir – um mundo cujo acesso eram degraus de ranhuras metálicas que surgiam abaixo dos pés e desapareciam à altura de um prédio.

O vacilo daquela mulher era o vacilo de todo mundo que um dia pisou naquele terreno pela primeira vez.

Até que alguém, sem se apresentar, chegou por trás e a agarrou pelos braços, de maneira firme. Era um desconhecido.

-Vem.

Sem chance de se desprender do braço anônimo, seguiu o rumo, ainda tremendo, sem tempo de agradecer ao empurrão. Seguia com um sorriso estranho colado ao rosto.

Ao chegar ao térreo (ali sim, depois de tantos degraus, o primeiro andar), a mulher seria mais uma personagem entre milhares, milhões de pessoas que, como boa parte dos meus amigos, desembarcam naquela estação – talvez a mais difícil de todas as escalas.

O empurrão era o cartão de boas vindas de uma cidade que há 458 anos escreve uma história baseada em relatos, e suor, da gente anônima e cabocla que um dia desembarcou por aqui pela primeira vez.

Que seja uma bela estadia.

Não me lembro quando usei escada rolante pela primeira vez. Provavelmente foi em alguma loja em companhia de meus tios e avós em Campinas, onde eles moraram até o final dos anos 80.

Era criança e, nessas visitas, ficava impressionado com o ritmo da cidade, a maior do interior paulista. Na frente do prédio, havia um parque que, anos depois, deu lugar a um terminal rodoviário. No topo tinha também um mega-anúncio da Coca-Cola, e luzes que só se apagavam na manhã seguinte. Perto dali, imensas lojas de departamento – com escadas rolantes, elevadores e anúncios num sistema interno de rádio que me lançavam sem paraquedas a algum episódio da família Jetsons.

Achava impossível que houvesse cidade maior que aquela. Até me dizerem que, perto dali, havia uma ainda maior. Chamava-se São Paulo.

Era como um mito: durante muito tempo, a capital paulista e o planeta Júpiter tinham, para mim, as mesmas proporções, distâncias e significados. Era algo que sabia que existia, mas que nunca imaginei alcançar.

Passado algum tempo, conheci a tal cidade em excursões escolares. E fui me abrigar nela, para estudar e trabalhar, muitos anos depois. Mas alcançá-la nunca devo ter alcançado. Nem entendido.

Como um estrangeiro, não sabia andar na rua sem cumprimentar nem ser cumprimentado. E sentia frio na barriga toda vez que as portas do metrô se fechavam. Achava curioso ver as pessoas inventando o que fazer nos longos minutos de silêncio em que se enfiavam num tubo subterrâneo, evitando olhares entre desconhecidos tão próximos. Até bula de remédio servia como distração.

Parecia falta de hospitalidade, mas não era: apesar de certa rudez no trato, posso dizer que jamais conheci pessoas tão dispostas a colaborar, seja no trânsito, seja no trabalho ou até mesmo para apresentar ao visitante o melhor lugar que serve a melhor iguaria.

Se havia algum sentido para a expressão “educação pela pedra” ela estava escancarada nas ruas de São Paulo.

Em poucos dias, o trajeto estava absorvido. As pernas andavam sozinhas entre uma estação e outra, e andar de escada rolante se tornou tão ordinário quanto a ação involuntária de respirar.

Por isso soou tão estranho, ao desembarcar em São Paulo nesta segunda-feira 9, testemunhar o espanto de uma mulher diante da escada rolante da estação Tietê. Mulher simples, de traços rudes e vestes sem cores, ela praticamente estancou sozinha o fluxo da rodoviária ao vacilar diante do primeiro degrau. Estava em pânico diante da escadaria.

Ao lado, uma acompanhante, que parecia filha ou irmã mais nova, tentava puxá-la pelo braço, acudindo que estava em segurança.

Como?

Como estar em segurança com aquele ziguezague interminável, gente bufando em seu cangote por fechar a entrada da escadaria? Como, com aqueles corredores de vozes e alto-falantes?

Como, com tantas buzinas e freios alucinados berrando a poucos metros dali?

De onde estava, fiquei espiando o desfecho da empreitada. Pude ver que a mulher seguia parada, e ria, um sorriso de quem tem medo. E de quem se envergonha da própria condição: de onde vinha, e não se sabe de onde vinha, talvez a vida fosse menos eletrificada, menos sólida, menos enclausurada. Podia andar em paz sem ter a sensação de ser engolida.

Mas estava lá por algum motivo, talvez por causa da mesma lei da física cantada por Belchior ao descrever sua chegada à mesma cidade, muitas anos antes dela e de mim: “Pois o que pesa no norte, pela lei da gravidade, disso Newton já sabia, cai no sul, grande cidade”.

Talvez fosse apenas uma visitante, com data de chegada e partida.

Ou talvez não fosse a escada que causasse o espanto, mas o mundo diante dela que acabava de se abrir – um mundo cujo acesso eram degraus de ranhuras metálicas que surgiam abaixo dos pés e desapareciam à altura de um prédio.

O vacilo daquela mulher era o vacilo de todo mundo que um dia pisou naquele terreno pela primeira vez.

Até que alguém, sem se apresentar, chegou por trás e a agarrou pelos braços, de maneira firme. Era um desconhecido.

-Vem.

Sem chance de se desprender do braço anônimo, seguiu o rumo, ainda tremendo, sem tempo de agradecer ao empurrão. Seguia com um sorriso estranho colado ao rosto.

Ao chegar ao térreo (ali sim, depois de tantos degraus, o primeiro andar), a mulher seria mais uma personagem entre milhares, milhões de pessoas que, como boa parte dos meus amigos, desembarcam naquela estação – talvez a mais difícil de todas as escalas.

O empurrão era o cartão de boas vindas de uma cidade que há 458 anos escreve uma história baseada em relatos, e suor, da gente anônima e cabocla que um dia desembarcou por aqui pela primeira vez.

Que seja uma bela estadia.

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