Sociedade

O papa é bom?

Olho para Joseph Ratzinger e vejo um sacerdote poderoso e impávido ante as mudanças do mundo que ocorrem céleres à sua frente, de braços cruzados diante dos fiéis que lhe pedem respostas urgentes a tantos dramas tão atuais

Bento XVI é uma semi-divindade sem absolutamente nenhuma vontade de dizer "sim". E me pergunto: o papa é um homem bom? Foto: AFP
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O fascinante tema do bem e do mal me persegue desde a infância. Mal aprendi o bê-á-bá, li “O Bom Diabo” em “Histórias de Tia Nastácia”, de Monteiro Lobato, e nunca esqueci: um príncipe manda pintar uma capelinha e exige que também se pinte a figura do diabo, não só a dos santos. Agradecido, o cramulhão, o capeta, o coisa ruim, mais adiante irá lhe retribuir a gentileza, provando que o cão não é tão feio quanto pintam.

(Leia a história aqui)

Anos depois, caiu-me em mãos um belo conto do russo Leonid Andreiev sobre o mesmo tema: “A Conversão do Diabo”. Um demônio meio chinfrim, entediado com suas diabruras numa pequena igreja de Florença, resolve procurar o padre para que este lhe ensine o que é “fazer o bem”. Começam a debater o assunto e, a certa altura, o pároco lhe recomenda: “Fazer o bem é: se te pedem a camisa, dê, embora não tenhas outra; se te dão uma bofetada, oferece a outra face. É muito simples!”

Duas semanas depois, retorna o diabo todo machucado, mas com uma camisa nova. Um velho tinha lhe batido na cabeça com a bengala e ele devolveu a pancada. “Não me deram na cara, mas na cabeça. Se fosse no rosto, saberia como fazer…” Quanto à camisa branquinha, tinha comprado para dá-la se alguém pedisse, mas ninguém o fizera. “Mas te pediram pão?”, pergunta o padre, exasperado. “Sim. Não dei porque esperava que me pedissem a camisa…” É um conto incrível, que mostra como até “fazer o bem” é relativo.

(Leia aqui, vale a pena)

Outra grande obra anti-maniqueísta é “O Visconde Partido ao Meio”, de Ítalo Calvino, a fábula do cavaleiro Medardo di Terralba, que recebe um tiro de canhão e sai pelo mundo manquitolando, dividido em duas partes: uma totalmente boa e outra totalmente má. É fascinante como acabamos por ganhar certa antipatia do bonzinho e a torcer pelo malvado, porque o bem soa falso para quem não é beneficiado por ele. O mal, não, é verdadeiro porque atinge todo mundo igualmente, sem diferença.

Últimos artigos de Cynara Menezes:

Conto tudo isso para chegar a “Habemus Papam”, do italiano Nanni Moretti, o filme que descreve o desespero de um homem, ungido papa, que entra em crise na hora de se acercar ao balcão para anunciar sua escolha ao mundo. O cardeal Melville se sente pequeno, demasiado humano, para levar em frente a tarefa colossal de ser o guia de milhões de católicos, “representante de Deus” sobre a face da Terra. Não acha que merece, não se sente digno. É um homem bom no sentido místico do termo: frágil, falho, cheio de dúvidas, e humilde. Havia feito na vida inclusive “algumas bondades”, segundo conta.

Moretti retrata na película a igreja “ideal” de nossos sonhos pueris, com freiras e padres contentes e desprovidos de vaidade, amigos entre si a mais não poder, como colegas de grêmio estudantil que costumam jogar bola na hora do recreio. E no filme eles jogam, mesmo. Enquanto contam seus prosaicos dramas ao psicanalista (vivido por Moretti) contratado para cuidar do sumo sacerdote, o próprio papa está perdido nas ruas, revisitando seu passado de ser humano, sem a proteção da Igreja e de ninguém, abandonado naquele momento talvez até por Deus. “Ser ou não ser papa?”, se pergunta nosso Hamlet de batina.

O cardeal guarda algumas semelhanças com o Jesus Cristo do “Evangelho” de José Saramago, que também se revolta diante da enormidade de sua muitas vezes cruel tarefa (aliás, no livro o diabo tampouco é pintado como “ruim”). Sempre me surpreendeu a resistência da Igreja Católica a um Cristo tão humano, que a mim parece bem mais próximo das pessoas do que aquele do Novo Testamento, um tanto marqueteiro em minha opinião – aquele negócio de dizer para uns “não conte para ninguém” e para outros “espalhe a boa nova”, me perdoem, é estratégia típica de marketing político.

O papa e os religiosos de Nanni Moretti me dão a impressão de serem todos homens de fé, regidos pela bondade, exatamente ao contrário da imagem que nós, não-católicos (e mesmo alguns católicos), costumamos ter do Vaticano: um lugar um tanto lúgubre, repleto de pessoas extremamente vaidosas e loucas para serem papas no lugar do papa. Onde a bondade é um norte a ser seguido nas palavras da homilia, mas não no dia a dia das relações políticas da igreja, dominada por disputas egocêntricas, traições e vendetas, como qualquer outra arena de poder.

Olho para Bento 16, o alemão Joseph Ratzinger, todo apegado a seus dogmas milenares sob a sotaina dourada, e nada enxergo da humildade e da humanidade do cardeal Melville. Vejo um sacerdote poderoso, soberbo, seguro de si e impávido ante as mudanças do mundo que ocorrem céleres à sua frente, de braços cruzados diante dos fiéis que lhe pedem respostas urgentes a tantos dramas tão atuais. Uma semi-divindade sem absolutamente nenhuma vontade de dizer “sim”. E me pergunto: o papa é um homem bom?

O fascinante tema do bem e do mal me persegue desde a infância. Mal aprendi o bê-á-bá, li “O Bom Diabo” em “Histórias de Tia Nastácia”, de Monteiro Lobato, e nunca esqueci: um príncipe manda pintar uma capelinha e exige que também se pinte a figura do diabo, não só a dos santos. Agradecido, o cramulhão, o capeta, o coisa ruim, mais adiante irá lhe retribuir a gentileza, provando que o cão não é tão feio quanto pintam.

(Leia a história aqui)

Anos depois, caiu-me em mãos um belo conto do russo Leonid Andreiev sobre o mesmo tema: “A Conversão do Diabo”. Um demônio meio chinfrim, entediado com suas diabruras numa pequena igreja de Florença, resolve procurar o padre para que este lhe ensine o que é “fazer o bem”. Começam a debater o assunto e, a certa altura, o pároco lhe recomenda: “Fazer o bem é: se te pedem a camisa, dê, embora não tenhas outra; se te dão uma bofetada, oferece a outra face. É muito simples!”

Duas semanas depois, retorna o diabo todo machucado, mas com uma camisa nova. Um velho tinha lhe batido na cabeça com a bengala e ele devolveu a pancada. “Não me deram na cara, mas na cabeça. Se fosse no rosto, saberia como fazer…” Quanto à camisa branquinha, tinha comprado para dá-la se alguém pedisse, mas ninguém o fizera. “Mas te pediram pão?”, pergunta o padre, exasperado. “Sim. Não dei porque esperava que me pedissem a camisa…” É um conto incrível, que mostra como até “fazer o bem” é relativo.

(Leia aqui, vale a pena)

Outra grande obra anti-maniqueísta é “O Visconde Partido ao Meio”, de Ítalo Calvino, a fábula do cavaleiro Medardo di Terralba, que recebe um tiro de canhão e sai pelo mundo manquitolando, dividido em duas partes: uma totalmente boa e outra totalmente má. É fascinante como acabamos por ganhar certa antipatia do bonzinho e a torcer pelo malvado, porque o bem soa falso para quem não é beneficiado por ele. O mal, não, é verdadeiro porque atinge todo mundo igualmente, sem diferença.

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Conto tudo isso para chegar a “Habemus Papam”, do italiano Nanni Moretti, o filme que descreve o desespero de um homem, ungido papa, que entra em crise na hora de se acercar ao balcão para anunciar sua escolha ao mundo. O cardeal Melville se sente pequeno, demasiado humano, para levar em frente a tarefa colossal de ser o guia de milhões de católicos, “representante de Deus” sobre a face da Terra. Não acha que merece, não se sente digno. É um homem bom no sentido místico do termo: frágil, falho, cheio de dúvidas, e humilde. Havia feito na vida inclusive “algumas bondades”, segundo conta.

Moretti retrata na película a igreja “ideal” de nossos sonhos pueris, com freiras e padres contentes e desprovidos de vaidade, amigos entre si a mais não poder, como colegas de grêmio estudantil que costumam jogar bola na hora do recreio. E no filme eles jogam, mesmo. Enquanto contam seus prosaicos dramas ao psicanalista (vivido por Moretti) contratado para cuidar do sumo sacerdote, o próprio papa está perdido nas ruas, revisitando seu passado de ser humano, sem a proteção da Igreja e de ninguém, abandonado naquele momento talvez até por Deus. “Ser ou não ser papa?”, se pergunta nosso Hamlet de batina.

O cardeal guarda algumas semelhanças com o Jesus Cristo do “Evangelho” de José Saramago, que também se revolta diante da enormidade de sua muitas vezes cruel tarefa (aliás, no livro o diabo tampouco é pintado como “ruim”). Sempre me surpreendeu a resistência da Igreja Católica a um Cristo tão humano, que a mim parece bem mais próximo das pessoas do que aquele do Novo Testamento, um tanto marqueteiro em minha opinião – aquele negócio de dizer para uns “não conte para ninguém” e para outros “espalhe a boa nova”, me perdoem, é estratégia típica de marketing político.

O papa e os religiosos de Nanni Moretti me dão a impressão de serem todos homens de fé, regidos pela bondade, exatamente ao contrário da imagem que nós, não-católicos (e mesmo alguns católicos), costumamos ter do Vaticano: um lugar um tanto lúgubre, repleto de pessoas extremamente vaidosas e loucas para serem papas no lugar do papa. Onde a bondade é um norte a ser seguido nas palavras da homilia, mas não no dia a dia das relações políticas da igreja, dominada por disputas egocêntricas, traições e vendetas, como qualquer outra arena de poder.

Olho para Bento 16, o alemão Joseph Ratzinger, todo apegado a seus dogmas milenares sob a sotaina dourada, e nada enxergo da humildade e da humanidade do cardeal Melville. Vejo um sacerdote poderoso, soberbo, seguro de si e impávido ante as mudanças do mundo que ocorrem céleres à sua frente, de braços cruzados diante dos fiéis que lhe pedem respostas urgentes a tantos dramas tão atuais. Uma semi-divindade sem absolutamente nenhuma vontade de dizer “sim”. E me pergunto: o papa é um homem bom?

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