Sociedade
O olhar para fora
Após passarmos dez anos de regozijo e esperança, entramos num processo acelerado de decomposição e ruptura do tecido social


Insisto em criticar o exagerado centralismo de pensamento que, mais uma vez, a exemplo do que ocorreu no início da globalização, impediu-nos acompanhar os passos exitosos das principais economias mundiais.
A exceção ficou na correção de rota, promovida pelo ex-presidente Lula, no auge da crise financeira internacional de 2007 e 2008, com o suporte de política externa conduzida por Celso Amorim e Samuel Pinheiro Guimarães, que nos safou de hecatombe mundial com intensidade igual à de 1929.
Concordo que a atual gravidade da crise institucional, vinda no bojo do golpe de 2016, trouxe efeitos dramáticos sobre a política, a economia e os direitos sociais, o que dificulta tirar o foco de umbigos federativos próximos da necrose.
Sem medo de errar: vivemos a mais perversa etapa do Acordo Secular de Elites de nossa história. Após passarmos dez anos de regozijo e esperança, entramos num processo acelerado de decomposição e ruptura do tecido social.
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Agrega-se a isso fatores não nucleares ocorridos nos três últimos meses: a prisão ilegal e sem provas do ex-presidente Lula; a greve ou locaute de caminhoneiros; Copa do Mundo; indecisão sobre eleições; duvidoso papel das Forças Armadas; tibieza de candidaturas avaliadas em pesquisas de opiniões direcionadas aos interesses do Acordo.
Governo ilegítimo, ministério inexpressivo, Congresso “amém nós todos”, Judiciário atabalhoado e terceirizado a um caçador de recompensas do Velho Oeste norte-americano e, finalmente, folhas e telas cotidianas partidárias, com jornalistas sabujos de opiniões marcadas por medo de perder salários.
Tudo isso trouxe ao País fissuras indeléveis, talvez irreversíveis. Estamos ou não em estado de putrefação? Como focarmo-nos nas transformações que ora acontecem no planeta, se a partir de organismos em decomposição?
É difícil, mas importante. Por quê? Talvez, apenas, porque acasos acontecem e um deles poderá vir após outubro deste ano. A ver.
Inegável que também na agropecuária vivemos situações conflituosas. Disfarçam-nas: “ah, é o único setor que vai bem na economia”. A sempre, “economia, estúpido”, de James Carville. Tento, semanalmente, analisa-las aqui. Percebo repercussão cada vez menor, talvez subalternas aos fatos apontados nos parágrafos acima.
Fusões entre complexos transnacionais de fabricantes de insumos; guerras comerciais protetivas entre países hegemônicos; previsões das OCDE e FAO sobre a pressão baixista das commodities agrícolas nos próximos dez anos; desindustrialização que afeta mesmo os agronegócios; leis a favor de agrotóxicos contrapostas à proibição da venda de orgânicos em supermercados; subsídios mundiais em torno de US$ 620 bilhões anuais dos países produtores (no Brasil, não passam de 3% da renda do agricultor); Trump usando braço do USDA (responsável pela agropecuária dos EUA) para criar agência semelhante à época do New Deal e ajudar seus agricultores, sobretaxando produtos oriundos de outros países; perspectiva de aumento de 30% nos preços dos agroquímicos em função das restrições ambientais na China.
Teria mais: a jabuticaba brasileira, por exemplo, no ridículo tabelamento de fretes proposto pelo governo ilegítimo. Teríamos a Fretebras?
Isso tudo e o arroxo nos empregos, salários e renda dos trabalhadores, não canso de repetir, reduz a demanda e tolhe a compensação de um mercado de sobrevivência para o produtor nacional de alimentos, sobretudo hortaliças, legumes, frutas e leite, produtos extraídos da agricultura familiar.
Durante décadas os setores agropecuários e dos agronegócios queixaram-se da pouca importância que os noticiários davam a eles. Pensam que, “tech, pop e tudo”, ganharam proeminência, os bobões.
Não percebem que somente se publica o óbvio, o interesse do fisiologismo empresarial. Ou seja, nada. Deveriam preocupar-se com o aqui escrito.
Eu mesmo não sei o motivo de CartaCapital manter uma coluna semanal dedicada ao agronegócio, escrita por este que vos fala. Sinto servir a muito pouco.
Se não mudar de ideia, na próxima, analiso esse mundo que não estamos vendo passar e suas implicações para o Brasil.
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