Sociedade
O negócio é outro
As Big Techs não querem só dinheiro, querem poder


As grandes empresas de tecnologia também conhecidas como big techs construíram infraestruturas geopolíticas que desafiam os Estados nacionais e suas legislações, principalmente nos países democráticos, onde podem atuar com seus poderosos lobbies no parlamento e cativando a imprensa. Os ataques de Elon Musk ao Judiciário brasileiro não são irrelevantes, mas não deixam de ser uma demonstração extrema desses grupos empresariais que não estão dispostos apenas a ganhar dinheiro e auferir alta lucratividade. Pela dimensão econômica que adquiriram, querem moldar as sociedades aos seus interesses, ou seja, querem definir a política.
A pesquisadora Shoshana Zuboff, autora do best seller A Era do Capitalismo de Vigilância, escreveu em 2015 um texto chamado The Big Other, alusão ao Big Brother de George Orwell. Zuboff afirmou que se o Grande Irmão representava o poder autoritário do Estado, o Big Other expressava o poder sutil, muitas vezes imperceptível, invisível das tecnologias que penetraram no cotidiano e fortalecem essas grandes corporações. Suas conclusões partiram da observação das operações do Google.
Zuboff relatou que as práticas do Google diante das legislações combinam a evasão ou desrespeito deliberados com a sistemática busca de vazios legais para ampliar suas operações, principalmente aquelas de criação de dispositivos de coleta e armazenamento de dados para a geração de perfis pessoais com vista a conduzir comportamentos. O Google atuou fortemente na exploração de dados comportamentais sem o consentimento explícito dos usuários, agindo nas zonas cinzentas da lei. É provável que nenhum Estado nacional possua mais dados sobre os seus cidadãos do que o atual Grupo Alphabet, holding do Google.
Entre 2008 e 2010, o Google coletou secretamente dados dos roteadores de Wi-Fi não criptografados das residências por onde seus simpáticos carros do Google Stret View passaram. Um fiscal de proteção de dados da Alemanha desconfiou da antena dos carros do Google e comprovou a coleta não autorizada da carga útil, payload data. A empresa que tinha como slogan Don’t be Evil, após negar que fazia a coleta ilegal de dados dos roteadores, assumiu que havia errado. O diretor foi demitido, mas ganhou como prêmio de consolação patentes bilionárias de georreferenciamento da big tech.
Com um poder e estruturas de investigação que poucos países pobres e em desenvolvimento possuem, a União Europeia autuou o Google e sua holding, o grupo Alphabet, diversas vezes. Em 2019, a Comissão Europeia multou o Google em 1,49 bilhão de euros (cerca de 9 bilhões de reais) pela violação de regras antitruste, abusando do seu domínio do mercado de buscas para impor cláusulas em contratos com site de terceiros que impediam a colocação de anúncios de empresas concorrentes da gigante norte-americana.
Após as revelações de Edward Snowden, em 2013, que confirmaram as relações intrínsecas entre as big techs e a NSA, agência de inteligência e espionagem digital dos Estados Unidos, Max Schrems, defensor de privacidade austríaco, moveu uma ação judicial para evitar que dados dos europeus fossem armazenados nas terras do Tio Sam. O grupo Meta, de Zuckerberg, foi intimado a interromper a transferência e processamento de dados de cidadãos da União Europeia nos Estados Unidos. Teve um período de adequação, mas não cumpriu as decisões. Em 2023, a autoridade de proteção de dados da Irlanda multou o grupo Meta em 1,2 bilhão de euros, o equivalente a 1,3 bilhão de dólares, ou 7 bilhões de reais, pelas violações.
Musk é apenas o mais fanfarrão e verborrágico dos bilionários das plataformas digitais
A China e a Índia exigem a localização de dados sensíveis e estratégicos em seu país. As big techs se enquadram, pois não conseguem enfrentar esses Estados. O fanfarrão Musk se calou e cumpriu decisões judiciais e exigências do governo da Turquia. No Brasil, o cenário é mais complexo. As big techs contam com políticos de extrema-direita que passaram a ser defensores de seus interesses. A proposta de regulação das plataformas foi paralisada na Câmara Federal. O Google chegou a promover a desinformação em larga escala a partir de uma mensagem inserida logo abaixo de seu popular mecanismo de busca dizendo que se o PL 2630 fosse aprovado a liberdade na internet estaria em risco. O grupo Alphabet atacou frontalmente a democracia brasileira sem expor seus diretores que agem nos corredores do Congresso. O projeto de lei de regulação da inteligência artificial também foi torpedeado pelas big techs, que ganham atores nacionais para vocalizar o seu bordão: regular a tecnologia impede a inovação.
A inovação deve garantir a criação e utilização de modelos e sistemas algorítmicos contrários às nossas leis, que portam discriminações e violações de direitos? Dados sensíveis tratados por modelos de deep learning devem ou não ser acompanhados e avaliados pelos riscos que podem causar? Neutralizado pela extrema-direita, contrária a qualquer regulação e submissa ao poder das big techs, o Congresso brasileiro vê esses oligopólios digitais continuarem a não pagar impostos que deveriam, extraindo dados sensíveis da nossa população e disseminando em suas plataformas desinformação em massa.
Enquanto na Turquia, Índia, China e União Europeia, o fanfarrão Musk acata as decisões das autoridades daqueles países de remoção de conteúdos criminosos e desinformativos, aqui no Brasil resolveu enfrentar o Poder Judiciário. Repare que Musk não atua aqui como as outras big techs. Estas agem nos bastidores, com o cuidado de dizer que não estão fora da lei, sem personalização dos enfrentamentos. Por quê? Pelo simples fato de que Musk, depois de adquirir o Twitter, fechou seu capital e transformou o nanoblogging em uma plataforma de seus objetivos políticos. Musk não deve explicações a um conselho de acionistas, por isso fala o que quer e acumula prejuízos.
O Twitter, desde que se tornou X, perdeu usuários. Começou a cobrar por funcionalidades, piorou muito a dinâmica da plataforma, perseguiu autoritariamente críticos e jornalistas de esquerda, disseminava suas postagens para usuários que não o seguiam. Talvez o empresário achasse que suas medidas fossem levantar o ex-Twitter. Mas tudo indica que não. Musk decidiu se tornar um líder mundial da direita extrema. Amigo e ex-sócio do ultradireitista Peter Thiel, age com Donald Trump, Javier Milei e Jair Bolsonaro. A democracia e as leis pouco importam. Por isso, diz claramente não respeitar as decisões de um Poder Judiciário. Musk quer interferir e conduzir a política no Brasil. Acreditou que aqui seria fácil se impor. Não parece estar interessado em economia. Está interessado no poder. Acredita que suas ações irão impulsionar e fortalecer o bolsonarismo no País. Quem tem negócios e serviços do Musk deveriam preocupar-se, pois ele não irá agir com objetivos comerciais, mas com finalidades políticas. •
*Professor da UFABC e bolsista do CNPq.
Publicado na edição n° 1327 de CartaCapital, em 11 de setembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O negócio é outro’
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