Sociedade

O movimento Constitucionalista de 1932 era separatista?

Cultura comemorativa e pouca disseminação da historiografia crítica sobre os Constitucionalistas explicam a força (e os mitos) da data em São Paulo

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“Quisemos um país próprio em 1888 e em 1932. De fato, há documentos da Coroa Portuguesa em que textualmente o rei de Portugal era alertado para vigiar de perto os paulistas, por seu ‘excessivo amor à liberdade'”, diz o manifesto publicado no site do movimento São Paulo Livre, que advoga pela separação de São Paulo do Brasil, ação que tornaria o estado uma unidade independente.

Na esteira do Brexit – plebiscito no qual os cidadãos do Reino Unido decidiram pela saída da União Europeia – movimentos como o São Paulo Livre e o São Paulo Independente fortaleceram suas ações pela independência política do estado. Há, inclusive, uma proposta de plebiscito nos moldes do Brexit, que seria realizado junto com as eleições municipais de outubro de 2016.

De acordo com informações do São Paulo Livre, em 64 municípios paulistas será possível emitir opinião, de maneira voluntária, sobre a possível separação do estado. Segundo a legislação atual, porém, o Plebiscito Consultivo Paulista não tem validade legal. 

Apesar de alertar contra o otimismo exagerado em torno da probabilidade de sucesso do “SPexit”, em outro texto, o São Paulo Independente afirma: “Esses rompimentos não ordinários mostram que existe uma tendência, um caminho, uma marcha em progresso e essa marcha é a marcha da secessão, da fragmentação política, como uma resposta urgente e necessária aos projetos de tirania global”

Ambos os grupos que advogam pelo rompimento evocam, em especial, o ano de 1932 como uma de suas inspirações.

O maior confronto armado do século 20 no Brasil, conhecido como “Revolução Constitucionalista”, mobilizou ao longo de três meses cerca de 100 mil homens e mulheres (entre tropas paulistas e federais), criou alianças entre grupos políticos rivais e marcou a memória e a historiografia de São Paulo. Deixou, ao seu final, entre 600 e 800 mortos, um número superior às baixas brasileiras durante a Segunda Guerra Mundial.

“A história paulista é rica e muito bonita – temos nossos próprios heróis, nossas façanhas, nossas conquistas e isso gera orgulho. Um orgulho de ser paulista que é perigoso aos olhos do muitos de fora de São Paulo”, continua o texto, elencando figuras que participaram do confronto em 1932, como Maria Squassábia (única mulher a participar do levante) e o escritor Monteiro Lobato, que apoiou o movimento Constitucionalista.

Lembrado a cada 9 de julho, o episódio, porém, é muitas vezes mal compreendido. Um de seus principais mitos é justamente o caráter separatista, de acordo com as historiadoras Vavy Pacheco Borges e Ilka Stern Cohen, estudiosas do período há mais de três décadas.

“A questão do separatismo em 1932 é completamente diluída e secundária. Está no antigetulismo, mas não é um dos motivos preponderantes”, explica Cohen, doutora em História Social pela USP.

“Na década de 1930 figuras proeminentes no estado eram separatistas, como Monteiro Lobato, o historiador Alfredo Ellis Junior, Tácito de Almeida”, elenca Vavy Borges, professora aposentada da Unicamp e autora de Tenentismo e Revolução Brasileira (1992). A pesquisadora lembra também que circularam três números de um jornalzinho separatista e que cantavam-se músicas com teor separatista. 

Não se tratava, no entanto, de um sentimento disseminado ou presente massivamente no movimento. “Do ponto de vista do separatismo, ele é algo meio mitológico. Houve um viés separatista, mas que de fato nunca foi tão importante no movimento”, afirma Marcelo Santos de Abreu, historiador e professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). 

“A verdade foi Getulio Vargas o grande responsável pois, para combater a revolução, chamou-a de separatista. Foi uma jogada política. Ele disse que era separatista e assim obteve o apoio do resto do Brasil contra São Paulo”, explica Vavy Borges. 

A pouca visibilidade de obras historiográficas com uma visão mais crítica sobre o período também contribui para a disseminação da interpretação de que o movimento de 1932 foi marcado pelo separatismo. 

Um dos primeiros livros revisionsitas surgiu na década de 1980, escrito pelo historiador americano Stanley Hilton (1932 – A Guerra Civil Brasileira). Tal historiografia crítica começou a se disseminar nas escolas no início dos anos 90: “Não se travava mais da escola garantir uma memória regional, mas sim criticar essa história, ter uma visão mais complexa sobre ela, evidenciando os conflitos sociais”, explica Abreu, da UFOP.

No entanto, a interpretação de que a chamada Revolução Constitucionalista de 1932 defendia o separatismo permaneceu viva. “Você vê como a visão acadêmica não tem peso, comparada com o peso da mídia”, diz Borges. 

Os motivos de 1932

A historiadora Vavy Borges, cujos avós contribuíram para o esforço da guerra, explica que a chamada “revolução” teve motivos complexos e de diversas naturezas. 

Uma delas foi a perda do domínio político de São Paulo que, até a ascensão de Getúlio Vargas por meio de um golpe político e militar em 1930, alternava-se no poder nacional por meio de seu Partido Republicano com Minas Gerais, na chamada Primeira República (1889-1930). 

São Paulo também era responsável pela maior parte do orçamento do País, oriundo da economia do café, desenvolvida principalmente em terras paulistas. “Os políticos e proprietários das grandes fazendas controlavam a economia do café e influenciavam as diretrizes econômicas e políticas do País”, conta Borges. Ao mesmo tempo, a legislação trabalhista em articulação no governo de Vargas desagrada elites paulistas, que atribuíram a Getúlio e aos que apoiavam essa politica a pecha de “comunista”.

Com as mudanças da década de 1930, as relações entre São Paulo e o governo federal provisório tornaram-se cada vez mais tensas, marcadas pela insatisfação dos habitantes de São Paulo. “Os paulistas, além de terem que engolir os interventores, ainda suportaram a perda de controle sobre as decisões referentes à política econômica, o que afetava imensamente os interesses dos cafeicultores”, explicou Cohen no artigo Quando perder é vencer, publicado na revista de História da Biblioteca Nacional.

A nomeação de interventores fora dos quadros políticos estaduais incomodava e, por fim, acabou por unir os membros do Partido Republicano Paulista (PRP) e seus opositores, os filiados ao Partido Democrático, na Frente Única. 

O acirramento dos ânimos atingiu o ponto de ebulição com a nomeação de um interventor por Vargas, que deveria ser civil e paulista, segundo as exigências das forças políticas agregadas na Frente Única. No dia 23 de maio, data marcada para o anúncio do secretariado de Pedro Toledo, escolhido para o cargo, um enorme comício juntou-se na Praça do Patriarca, na região central da capital.

Em meio aos discursos inflamados, parte da multidão dirigiu-se ao Palácio dos Campos Elísios, onde seria feito o anúncio. Na confusão, jornais getulistas foram atacados e o tumulto resultou na morte de 13 pessoas, além de muitos feridos. Entre os mortos, estavam os jovens Miragaia, Martins, Drausio e Camargo, alçados à condição de símbolos do movimento por meio da sigla “MMDC”. 

Houve grande mobilização popular, galvanizada pelo discurso de retorno à normalidade institucional dos Constitucionalistas. “As pessoas iam, a mobilização foi enorme. No dia 23 de maio, metade da cidade estava nas ruas”, diz Ilka Cohen. Com o acirramento e a incitação da imprensa paulista na época, o clima tornou-se insustentável. Iniciaram-se os clamores por uma resistência armada. 

A guerra civil começou na noite de 9 de julho. Centenas de combatentes alistaram-se. Indústrias mobilizaram-se para oferecer armamentos e a população uniu-se na chamada Campanha do Ouro para o Bem de São Paulo. Três meses depois, com um número de mortos estimados entre 600 e 800, a rebelião foi sufocada. Em um gesto de aproximação com a elite local, Getúlio Vargas nomeou para a chefia do governo do estado um paulista civil. Tratava-se de Armando de Sales Oliveira, engenheiro, empresário e cunhado de Julio de Mesquita Filho, do jornal O Estado de S.Paulo, publicação também envolvido ativamente na revolta Constitucionalista de 1932.

A cultura comemorativa

Logo após o acontecido, iniciou-se a disputa pela memória do evento, entre diferentes forças políticas que o constituíram. “Houve certa unidade circunstancial (entre os grupos políticos) que logo desaparece. Em seguida, essas diferentes forças políticas vão disputar a memória do evento e se definir, muitas vezes, em função no protagonismo que tiveram no evento”, diz Marcelo Abreu.

O historiador afirma que houve uma adesão forte da população em torno dos Constitucionalistas. Tal visão foi, ao longo do tempo, desfazendo-se. “O que procura garantir a coesão é a cultura comemorativa criada em seguida, que luta contra o esquecimento”. 

Na farta memorialística sobre a revolta de 1932, redigida por membros de diferentes estratos da classe média paulista, há também registros numerosos de críticas à guerra civil deflagrada no estado, lembra Vavy Borges. 

A cultura comemorativa em torno das memórias da revolta, iniciada logo após seu término, foi decisiva para a força que a data carrega. “Assim que terminou a guerra civil, a narrativa constitucionalista, que supunha uma defesa dos princípios liberais contra os autoritários, vai se forjando a partir do complexo comemorativo que as elites paulistanas e as classes médias que participaram ativamente do conflito constituíram”.

Outro substrato que restou da memória de 1932 foi a ideia de São Paulo como a “locomotiva do Brasil”. Tal ideia deriva da tradição histórica de certa forma consolidada entre as elites políticas paulistas acerca do protagonismo de São Paulo, ligado aos bandeirantes e à construção histórica de que eles teriam concedido ao Brasil o seu território atual. 

“A memória de 1932 apropria-se do bandeirismo e da ideia de que, durante a Primeira República, São Paulo era o estado mais moderno e desenvolvido da federação. A ideia da locomotiva, criada nos anos 20, persiste até hoje”, explica Abreu.

Para Vavy Borges, a mitologia em torno de 1932 deve-se também à permanência, no discurso politico oficial do estado, da ideia de São Paulo como a unidade mais importante da federação, capaz de indicar os melhores rumos para o País. Nesse ideário, o Brasil deve aos paulistas o seu território, a sua Independência (proclamada às margens do Ipiranga) e uma tradição de luta pela legalidade constitucional.  

“Nos últimos anos, essa memória começou a ser acionada para evidenciar certa excepcionalidade de São Paulo, uma certeza de que São Paulo, diferentemente do resto do Brasil, estaria no rumo certo”, diz Abreu. 

 

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