Sociedade

O julgamento do “primeiro serial killer do Brasil”

Advogados da Faculdade do Largo São Francisco fazem a simulação de Preto Amaral, morto há 85 anos e dono de um busto no Museu do Crime como responsável pelo assassinato de três garotos e pela tentativa de homicídio de outro jovem

Foto: Sérgio Menezes/ComunicaçãoDPESP
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É noite. Há poucas cadeiras vagas no salão nobre da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, centro de São Paulo. O ar imponente da sala recém-restaurada ganha maior grandeza quando adentram o juiz, a acusação e a defesa. Sentado no centro deste cenário, figura um homem negro, cabisbaixo, roupas simples. É José Augusto do Amaral, mais conhecido como Preto Amaral, tido como o primeiro serial killer do Brasil. Ou melhor, seria se não tivesse falecido há 85 anos. O ator representa o homem acusado de diversos crimes hediondos em um julgamento que não chegou a ocorrer devido à morte do réu.

Um fato que, no entanto, não impediu Preto Amaral de entrar para a história criminal brasileira sem ser condenado ou de ganhar um busto no Museu do Crime como responsável pelo assassinato de três garotos e pela tentativa de homicídio de outro jovem. Para corrigir essa distorção, o público foi convidado a ser o jurado de um julgamento simulado, que trouxe pela primeira vez a defesa do acusado. Um momento reconstruído apenas pelos procedimentos penais registrados na investigação, laudos médicos, perícias policiais, depoimentos, fotografias e jornais da época.

 

“É um caso difícil”, diz, pouco antes do início da sessão, o ex-secretário de Justiça do Estado de São Paulo Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, responsável pela defesa do acusado. Ele apela, no entanto, para o contexto dos fatos: um Brasil pós-república, onde reinava uma ideologia segregacionista com a ideia de que o negro pertencia a uma raça inferior, propenso à prática de barbaridades. “Isso criou todo um caldo de cultura contra os negros.” Teria sido Preto Amaral vítima de uma sociedade racista? A tática da defesa, auxiliada pelo defensor público Renato Campos Pinto de Vitto, exploraria esse contexto de “alto grau de duvida”.

A ideia do julgamento começou a ser gestada há cinco anos. No Conjunto Nacional, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), uma das entidades organizadoras, fez uma exposição de um concurso cultural com presas. Lá, o diretor da Cia Pessoal do Faroeste, Paulo Faria, que montava a peça Os Crimes de Preto Amaral, conheceu o trabalho da organização e pediu o auxílio para explicar aos atores a importância do direito de defesa. O contato foi além. “Coletamos mais de três mil assinaturas em um abaixo assinado nas temporadas da Cia para remover o busto, mas ele continua lá”, conta Luciana Zaffalon, defensora pública e coordenadora do IDDD à época. Por isso, decidiram realizar o evento para obter de um júri uma decisão simbólica.

A mistura de realidade e teatro, com atores representando o réu e a mãe de uma das vítimas, foi filmada para um documentário, mas soou estranha. O realismo da reconstrução social do julgamento, por outro lado, ficou a cargo do promotor de Justiça em São Paulo Carlos Roberto Marangoni Talarico e do advogado criminalista Augusto de Arruda Botelho Neto na acusação, além da defesa.

O óbvio estranhamento de se discutir o destino, mesmo que moral, de um réu morto há cerca de 80 anosassumiu, então, o banco da acusação. “Desde os anos 80, surgiram análises comportamentais e psicológicas sobre criminosos que fazem com que haja a possibilidade de exame da prova daquele processo a luz da moderna ciência”, diz Talarico. Apressado, conta momentos antes de entrar em ação, que sua tática seria mostrar que as evidências dos autos guardariam o perfil de um homem capaz de cometer tais crimes. “Depois me pergunte como não deu certo”, brincou.

De forma indireta, os discursos dos defensores e da acusação indicam que o verdadeiro tópico em análise era o comportamento racista da sociedade paulistana da época. Aos poucos, o perfil de Preto Amaral foi sendo construído como um homem que trabalhava em batalhões do exército pelo Brasil, mas sempre desertava. Ficou desempregado, foi preso por vadiagem e seu destino caminhou para o crime quando testemunhas o viram com um garoto de 10 anos. Desaparecida em 24 de dezembro, a criança foi para uma missa de Natal da qual jamais retornou. Seu corpo foi identificado pela mãe dias depois no Campo de Marte, então um ponto simbólico da divisão geográfica entre os bairros centrais e os periféricos, repletos de negros e pobres.

As vítimas, destaca uma testemunha de acusação, eram todas meninos de idade semelhante, mesma cor e que faziam pequenos serviços para ajudar a família. O réu criaria uma falsa intimidade, ofereceria comida e emprego para depois leva-las a um local ermo, onde eram mortas e violentadas sexualmente.

Amaral foi preso depois de um jovem sobreviver a um de seus supostos ataques e reconhece-lo. Após o incidente, o réu confessou o crime e levou a polícia a um local onde havia outros dois corpos já em estado de decomposição. Assumiu também a autoria destes crimes. “Outros homens negros foram presos como suspeitos, mas a mídia fabricou o monstro e forjou uma opinião”, ressalta no banco das testemunhas Paulo Fernando de Souza Campos, autor de uma tese de doutorado em História sobre o acusado, na qual avalia a degeneração da raça negra na pesquisa forense da época.

Segundo o estudioso, os corpos encontrados ficavam em caminhos comuns usados por negros e pobres, motivo pelo qual poderia ter levado a polícia ao local, após ser torturado. “As pessoas poderiam ver ali um corpo por dias e não haveria delações por medo de serem incriminados.”

O clima de tensão entre defesa e acusação é constante, realista. Trocas de ironias, provas atiradas ao chão e interpretações teatrais das evidências surgem de ambos os lados. “Ele contou detalhes dos crimes e disse que mantém copula com alguém com certa quentura porque tem pavor de frieza, isso porque já havia experimentado um cadáver frio”, grita Talarico. A resposta de Vitto é irritada. “Não é difícil acreditar que se fabricavam provas naquela época e que um garoto não seria pressionado a dizer coisas. Teríamos outra postura se fosse um branco.”

Em meio aos embates, a curiosidade sobre o caso atraiu atenção de longe. As estudantes de Direito Thais de Oliveira e Jéssica Almeida, além da colega Maitê Figueiredo Faustino, vieram de Mogi das Cruzes para participar do júri. “Por causa do contexto da época, primeira achei que ele fosse inocente. Mas depois de ouvir a promotoria dizer que ele assumiu a culpa na delegacia em frente aos jornalistas mudei de ideia”, diz Oliveira. “Acho que ele era culpado pelas provas apresentadas, a defesa se baseia em teorias”, completa Almeida.

Para a defesa, todas as testemunhas foram ouvidas no último dia do inquérito, um indicativo de que o delegado as interrogou extrajudicialmente para colher informações, detalhes e criar uma confissão coesa, concisa. “Não há prova nenhuma. Quero crer que a sociedade paulista que esconde em baixos dos tapetes suas raízes higienistas melhorou nestes últimos 85 anos”, exclama Vitto. Ovacionado, sua tese teve apoio amplo da plateia de jurados: 257 votos de inocente e 75 para culpados, após mais de quatro horas de discussões.

Com o julgamento terminado, Luciana Zaffalon posa para fotos ao lado dos integrantes da companhia e outros membros do evento. Sorri. “Esse julgamento faz um resgate histórico e mostra que nossos negros ainda são julgados de forma diferente. Precisamos enfrentar essa pauta para que consigamos construir um Estado, de fato, democrático de direito.”

É noite. Há poucas cadeiras vagas no salão nobre da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, centro de São Paulo. O ar imponente da sala recém-restaurada ganha maior grandeza quando adentram o juiz, a acusação e a defesa. Sentado no centro deste cenário, figura um homem negro, cabisbaixo, roupas simples. É José Augusto do Amaral, mais conhecido como Preto Amaral, tido como o primeiro serial killer do Brasil. Ou melhor, seria se não tivesse falecido há 85 anos. O ator representa o homem acusado de diversos crimes hediondos em um julgamento que não chegou a ocorrer devido à morte do réu.

Um fato que, no entanto, não impediu Preto Amaral de entrar para a história criminal brasileira sem ser condenado ou de ganhar um busto no Museu do Crime como responsável pelo assassinato de três garotos e pela tentativa de homicídio de outro jovem. Para corrigir essa distorção, o público foi convidado a ser o jurado de um julgamento simulado, que trouxe pela primeira vez a defesa do acusado. Um momento reconstruído apenas pelos procedimentos penais registrados na investigação, laudos médicos, perícias policiais, depoimentos, fotografias e jornais da época.

 

“É um caso difícil”, diz, pouco antes do início da sessão, o ex-secretário de Justiça do Estado de São Paulo Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, responsável pela defesa do acusado. Ele apela, no entanto, para o contexto dos fatos: um Brasil pós-república, onde reinava uma ideologia segregacionista com a ideia de que o negro pertencia a uma raça inferior, propenso à prática de barbaridades. “Isso criou todo um caldo de cultura contra os negros.” Teria sido Preto Amaral vítima de uma sociedade racista? A tática da defesa, auxiliada pelo defensor público Renato Campos Pinto de Vitto, exploraria esse contexto de “alto grau de duvida”.

A ideia do julgamento começou a ser gestada há cinco anos. No Conjunto Nacional, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), uma das entidades organizadoras, fez uma exposição de um concurso cultural com presas. Lá, o diretor da Cia Pessoal do Faroeste, Paulo Faria, que montava a peça Os Crimes de Preto Amaral, conheceu o trabalho da organização e pediu o auxílio para explicar aos atores a importância do direito de defesa. O contato foi além. “Coletamos mais de três mil assinaturas em um abaixo assinado nas temporadas da Cia para remover o busto, mas ele continua lá”, conta Luciana Zaffalon, defensora pública e coordenadora do IDDD à época. Por isso, decidiram realizar o evento para obter de um júri uma decisão simbólica.

A mistura de realidade e teatro, com atores representando o réu e a mãe de uma das vítimas, foi filmada para um documentário, mas soou estranha. O realismo da reconstrução social do julgamento, por outro lado, ficou a cargo do promotor de Justiça em São Paulo Carlos Roberto Marangoni Talarico e do advogado criminalista Augusto de Arruda Botelho Neto na acusação, além da defesa.

O óbvio estranhamento de se discutir o destino, mesmo que moral, de um réu morto há cerca de 80 anosassumiu, então, o banco da acusação. “Desde os anos 80, surgiram análises comportamentais e psicológicas sobre criminosos que fazem com que haja a possibilidade de exame da prova daquele processo a luz da moderna ciência”, diz Talarico. Apressado, conta momentos antes de entrar em ação, que sua tática seria mostrar que as evidências dos autos guardariam o perfil de um homem capaz de cometer tais crimes. “Depois me pergunte como não deu certo”, brincou.

De forma indireta, os discursos dos defensores e da acusação indicam que o verdadeiro tópico em análise era o comportamento racista da sociedade paulistana da época. Aos poucos, o perfil de Preto Amaral foi sendo construído como um homem que trabalhava em batalhões do exército pelo Brasil, mas sempre desertava. Ficou desempregado, foi preso por vadiagem e seu destino caminhou para o crime quando testemunhas o viram com um garoto de 10 anos. Desaparecida em 24 de dezembro, a criança foi para uma missa de Natal da qual jamais retornou. Seu corpo foi identificado pela mãe dias depois no Campo de Marte, então um ponto simbólico da divisão geográfica entre os bairros centrais e os periféricos, repletos de negros e pobres.

As vítimas, destaca uma testemunha de acusação, eram todas meninos de idade semelhante, mesma cor e que faziam pequenos serviços para ajudar a família. O réu criaria uma falsa intimidade, ofereceria comida e emprego para depois leva-las a um local ermo, onde eram mortas e violentadas sexualmente.

Amaral foi preso depois de um jovem sobreviver a um de seus supostos ataques e reconhece-lo. Após o incidente, o réu confessou o crime e levou a polícia a um local onde havia outros dois corpos já em estado de decomposição. Assumiu também a autoria destes crimes. “Outros homens negros foram presos como suspeitos, mas a mídia fabricou o monstro e forjou uma opinião”, ressalta no banco das testemunhas Paulo Fernando de Souza Campos, autor de uma tese de doutorado em História sobre o acusado, na qual avalia a degeneração da raça negra na pesquisa forense da época.

Segundo o estudioso, os corpos encontrados ficavam em caminhos comuns usados por negros e pobres, motivo pelo qual poderia ter levado a polícia ao local, após ser torturado. “As pessoas poderiam ver ali um corpo por dias e não haveria delações por medo de serem incriminados.”

O clima de tensão entre defesa e acusação é constante, realista. Trocas de ironias, provas atiradas ao chão e interpretações teatrais das evidências surgem de ambos os lados. “Ele contou detalhes dos crimes e disse que mantém copula com alguém com certa quentura porque tem pavor de frieza, isso porque já havia experimentado um cadáver frio”, grita Talarico. A resposta de Vitto é irritada. “Não é difícil acreditar que se fabricavam provas naquela época e que um garoto não seria pressionado a dizer coisas. Teríamos outra postura se fosse um branco.”

Em meio aos embates, a curiosidade sobre o caso atraiu atenção de longe. As estudantes de Direito Thais de Oliveira e Jéssica Almeida, além da colega Maitê Figueiredo Faustino, vieram de Mogi das Cruzes para participar do júri. “Por causa do contexto da época, primeira achei que ele fosse inocente. Mas depois de ouvir a promotoria dizer que ele assumiu a culpa na delegacia em frente aos jornalistas mudei de ideia”, diz Oliveira. “Acho que ele era culpado pelas provas apresentadas, a defesa se baseia em teorias”, completa Almeida.

Para a defesa, todas as testemunhas foram ouvidas no último dia do inquérito, um indicativo de que o delegado as interrogou extrajudicialmente para colher informações, detalhes e criar uma confissão coesa, concisa. “Não há prova nenhuma. Quero crer que a sociedade paulista que esconde em baixos dos tapetes suas raízes higienistas melhorou nestes últimos 85 anos”, exclama Vitto. Ovacionado, sua tese teve apoio amplo da plateia de jurados: 257 votos de inocente e 75 para culpados, após mais de quatro horas de discussões.

Com o julgamento terminado, Luciana Zaffalon posa para fotos ao lado dos integrantes da companhia e outros membros do evento. Sorri. “Esse julgamento faz um resgate histórico e mostra que nossos negros ainda são julgados de forma diferente. Precisamos enfrentar essa pauta para que consigamos construir um Estado, de fato, democrático de direito.”

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