Sociedade

O inimigo do major

No Brasil, na Polícia Militar e na política de segurança, impera um lógica de “Eu vs. Eles” em que as mortes em determinada parcela da população não interessam à outra

Coronel Fábio de Souza é produto de uma lógica perversa que orienta a atuação do braço armado do Estado
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A recente revelação de que o comandante do Batalhão de Choque do Rio de Janeiro é apologista do nazismo é chocante, mas não é surpreendente. Longe de ser uma exceção, o coronel Fábio de Souza é produto de uma lógica perversa que orienta a atuação do braço armado do Estado (leia-se: armado com munição pesada no morro e com balas de borracha no asfalto). Não é por acaso que uma pessoa com essas características consegue ascender tão alto na hierarquia.

Antes de ter Fábio de Souza como um dos seus comandantes, parte da polícia militar do Rio já tinha, entre seus símbolos, a caveira e já emitia o grito de guerra: “Homens de preto / Qual é sua missão? / É invadir favela e deixar corpo no chão”.

Segundo a ONG Fórum Brasileiro de Segurança Pública, constituída em março de 2006 com o objetivo de criar referências e buscar cooperação técnica em áreas ligadas à atividade policial, o Rio está na liderança em homicídios causados por policiais, com 416 mortos em autos de resistência computados em 2013.

Comparativamente, a polícia do Reino Unido, entre maio 2012 e abril de 2013, disparou apenas três tiros e não matou ninguém; e o número de mortes das quais Polícias Civis e Militares brasileiras foram autoras nos últimos cinco anos, totalizando 11.197, é o equivalente ao que as polícias dos Estados Unidos registram em 30 anos.

Em outra ponta do mesmo problema, a polícia brasileira, recordista em matar, também é infelizmente morre muito no exercício dessa tarefa – o que é fundamental para entender a espiral de violência no estado. Segundo dados do mesmo levantamento da ONG FBSP, em 2013 morreram 490 agentes de segurança no país. Uma média de 1,34 policial morto por dia. Novamente, o Rio é o campeão, com 2014 policiais assassinados, contra 90 em São Paulo, em segundo, e 51 no Pará, em terceiro. Importante frisar aqui a dificuldade relatada pela ONG no que diz respeito à disponibilidade e transparências dos dados.

Tantas vítimas, entre infratores ou supostos infratores e inocentes, numa proporção comparável apenas com países em guerra, deveriam mobilizar a atenção da sociedade e os seus esforços no poder público para pôr um fim nisto. Acontece que no Brasil, na Polícia Militar e na política de segurança de modo geral, impera um lógica de “Eu vs. Eles” (própria de uma força de segurança militarizada, formada e treinada na lógica do combate ao inimigo), em que as mortes em determinada parcela da população não interessam à outra que detém os meios que poderiam dar voz a tanto sofrimento; sem mencionar o fenômeno em que a parte da população mais vitimada pelos abusos perpetrados pelas polícias assimila e reproduz a mentalidade e os discursos da outra parte da população, reproduzindo preconceitos contra si mesma e se tornando cúmplice de sua própria desgraça.

No final do ano passado, a ONG Anistia Internacional chamou a atenção para a qualificação dos números da violência no País. De posse de dados do último Mapa da Violência no Brasil, compilados com base nos dados do Datasus, a Anistia passou a divulgar que no ano de 2012 foram registrados 56.337 homicídios no País. Entre os mortos, 57,6% do total eram jovens com idade entre 15 e 29 anos, 93,3% eram homens e 77% eram negros. A população negra e pobre é vítima de uma violência sistemática, já naturalizada por boa parte da sociedade.

Não se trata, portanto, de acaso, quando descobrimos que um dos comandantes da segurança pública tem admiração declarada pelo nazismo (expressa não só em sigilo, mas a um grupo de outros oficiais). Em nome da realização de um interesse supostamente comum (a segurança pública), mas para o qual a população mais pobre jamais foi chamada a opinar, o Estado autoriza a adoção de medidas “excepcionais”, em uma clara tática de securitização do problema social, “justificada” geralmente pelo discurso da guerra às drogas, que acabam por criminalizar a pobreza e construir, no imaginário da maioria da população, a figura do favelado como marginal ou bandido.

De pronto, pergunto-me: não teria sido isso, salvando as óbvias diferenças históricas, o que Hitler fez ao enunciar a ameaça do bolchevismo judeu para “justificar” suas perseguições? Primeiro, denuncia-se uma grande ameaça; depois, problemas são associados a essa ameaça; espalha-se o medo e, por fim, surgem as soluções “firmes” – normalmente aquelas que não imaginamos que pessoas boas seriam capazes de oferecer, tamanha a dureza necessária: “Bandido bom é bandido morto”. Novas lideranças (führer) aparecem. Mas o problema é que as ameaças enunciadas nunca se esgotam (se se constrói uma nova ameaça), porque elas se tornam fundamentais para sustentar o papel da “solução”. Quem precisaria de “um caveira” se não houvesse inimigo a altura?

Inimigos são criados. No esteio de uma sociedade desigual, apartada, inclusive geograficamente, surge o avatar do “criminoso” – não por acaso onde ele terá menos chance de contestar seu papel. Basta algum determinismo cínico, e pronto: atribuem-se características comportamentais a certo tipo de gente. Algo que fazemos até sem perceber, mas nem sempre com a intenção de identificar homicidas, estupradores ou assaltantes. Segundo essa lógica, o sujeito que nasce em determinado lugar passa a ser entendido como de comportamento X.

Não teria Amarildo de Souza cumprido o exato destino de ser uma caricatura do que a sociedade elegeu como os problemas sociais de um país onde um juiz-deus dá voz de prisão a um agente de transito, enquanto dirige sem placa no carro?

A lógica nazista de construção de “inimigo comum” se vê também na difamação perpetrada contra os homossexuais, sobretudo por meio da criminosa associação de sua sexualidade com a pedofila.

Já sabemos, pela memória histórica, aonde essa lógica vai dar: nos guetos, campos de concentração e paredões de fuzilamento de seres humanos.

A exoneração do coronel Fábio de Souza pelo secretário de Segurança do Estado, José Mariano Beltrame, após divulgação de mensagens polêmicas em grupo do WhatsApp talvez (talvez!) seja também o começo da desconstrução desta lógica que forma as polícias na eleição de um inimigo a se combater. É, no mínimo, um passo no caminho certo. Que continuemos nele.

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