Sociedade

‘O ideal seria antecipar as eleições na CBF’, diz secretário-geral afastado

Elo entre a CBF e os clubes, Feldman teria desagradado aos “históricos” ao propor um pacto para mudar o sistema de gestão da entidade

Na esteira do afastamento de Caboclo, o secretário-geral da CBF, Walter Feldman, também foi afastado (Fotos Públicas)
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Rio de Janeiro – A Confederação Brasileira de Futebol está sem comando há três meses, desde que seu presidente, Rogério Caboclo, foi afastado após denúncias de assédio moral e sexual contra uma secretária. Após a saída de Caboclo, suspenso por 15 meses, a direção da CBF mergulhou em uma pesada disputa interna para saber quem passará a dar as cartas na entidade que controla o futebol brasileiro e tem uma receita anual próxima a R$ 1 bilhão.

Federações de um lado, clubes de outro e um Conselho de Administração formado por oito vice-presidentes – muitos ainda ligados aos dirigentes “históricos” da CBF – se digladiam pela prerrogativa de colocar a entidade novamente nos trilhos. Somente neste breve período “pós-Caboclo”, a CBF já teve dois presidentes interinos e sofreu uma tentativa de intervenção judicial. Nos corredores, o afastamento de Caboclo é atribuído a uma articulação comandada pelo ex-presidente Marco Polo Del Nero (2015-2017), banido do futebol após ter seu nome envolvido no escândalo de corrupção conhecido como “Fifagate”.

Na esteira do afastamento de Caboclo, o secretário-geral da CBF, Walter Feldman, também foi afastado. Elo entre a CBF e os clubes, Feldman teria desagradado aos “históricos” – grupo que remonta às gestões dos ex-presidentes Ricardo Teixeira (1989-2012) e José Maria Marin (2012-2015) – ao propor um pacto para mudar o sistema de gestão da entidade. Diante da crise da CBF, Feldmann, que já foi deputado federal e presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo, propõe eleições antecipadas e critica a tentativa de intervenção surgida na Justiça do Rio de Janeiro.

Leia a entrevista concedida a CartaCapital.

CartaCapital: A que o senhor atribui sua demissão da Secretaria Geral da CBF?

WF: O diálogo com os clubes foi a causa do meu afastamento. Antes da minha saída, os clubes da Série A solicitaram uma reunião com a direção da CBF. Estavam propondo mudanças. Mas, houve uma forte resistência da direção da CBF em receber os clubes. Eu, que nesses anos todos tive o papel de construir uma relação mais democrática com os clubes, insisti para que essa reunião existisse. Se ela tivesse ocorrido de forma tranquila, sensata, sem resistência nem armas dos dois lados, a gente poderia sentar e dizer: vamos sair juntos disso.

CC: O senhor tornou-se interlocutor dos clubes na busca por mais espaço?

WF: Eu queria essa reunião com os clubes da Série A, e depois da Série B, mas a direção da CBF resistiu muito e deu ao meu trabalho a interpretação de pedir algo que para eles era agressivo quando, na minha opinião, era o instrumento mais democrático e necessário para podermos avançar juntos. Houve esse incômodo e uma articulação do vice-presidente [Gustavo] Feijó exigindo a minha saída. Mas, a causa foi exatamente a relação entre a CBF e os clubes, uma coisa que há anos a gente vem tratando e que melhorou demais.

CC: Não existe espaço para os clubes na CBF?

WF: No passado não havia a presença intensa de clubes na CBF como aconteceu nesse período. Passaram a ter a Comissão Nacional de Clubes, conselhos técnicos fortes, reuniões periódicas. Os clubes eram atendidos regularmente, tinham passagem obrigatória pela CBF, que se tornou uma instituição procurada, dialogada. Claro que, quando acontece isso, há um certo empoderamento dos clubes que assustou uma parte da direção da CBF. Aquela reunião foi a gota d’água.

Rogério Caboclo, presidente afastado do comando da CBF. Rogério Shineidr/AFP

CC: O senhor enxerga alguma saída imediata para a crise da entidade?

WF: Apesar de termos construído um processo mais democrático do que o ciclo anterior, introduzindo a presença forte de clubes da Série A e da Série B, o modelo de decisão da CBF é um problema. Quando existe uma crise, é o momento de você aprofundar o processo de construção democrática. O ideal seria a antecipação das eleições para superarmos a crise. Como não há no Estatuto da CBF essa possibilidade, a saída é fazer gambiarras. Você tem que escolher entre os oito vices, aí é um processo interno complicado.

CC: O que o senhor achou da decisão do Conselho de Administração da CBF que indicou o vice Ednaldo Rodrigues, como presidente interino?

WF: A crise é muito grande para ter uma saída reduzida. Se houvesse a antecipação das eleições, se permitiria que a resposta fosse dada pelo sistema e não por um pequeno grupo. Mas, do ponto de vista estatutário, uma escolha entre os vices é a única saída possível. Os vices, na verdade, também estão envolvidos com a crise. O ideal seria uma assembleia das federações que fizesse uma mudança estatutária que antecipasse as eleições. Isso seria bom para todo mundo porque haveria uma nova gestão escolhida democraticamente e que poderia superar esse momento tão agudo.

Como não tem um órgão decisório que não seja os próprios vices, tudo fica limitado porque eles sempre encontrarão uma solução, no máximo, interna. Hoje temos em lados opostos os clubes, as federações e os vice-presidentes. Agora seria o momento do pacto, de reunir todo mundo para sairmos juntos dessa crise. Os clubes, as federações, o torcedor e o próprio futebol são afetados, mas só os oito vices é que irão resolver.

CC: O desempenho da Seleção Brasileira pode ser afetado pela crise?

WF: A dimensão da Copa de 2022 é muito grande. Para o Brasil, ela é muito importante. A Seleção sofre influência da questão administrativa da CBF, então ela viverá um período no qual tem que trabalhar para se blindar e não ser contaminada pela crise.

Uma belíssima articulação entre federações e clubes pode ter como resultado a escolha de uma direção da CBF que tenha a tarefa de dar o grande salto da modernidade

CC: A CBF ainda teme o fantasma do Fifagate?

WF: O Fifagate é totalmente página virada. A CBF respondeu rigorosamente aos problemas que ocorreram no processo, reformou profundamente a sua estrutura sob o comando da direção, mas também com grande apoio de entidades como a Ernst&Young e a KPMG. A CBF trouxe para dentro o que há de mais moderno no setor privado para adotar um novo modelo. O episódio Fifagate, na nossa avaliação, está superado. Mas, ainda não tivemos condições de superar a crise atual, até porque é difícil enfrentar um problema imprevisível e que aconteceu por um desvio de caráter pessoal do presidente.

Havia um desvio ético no passado, pois os contratos que deveriam ter um caráter público tinham também um caráter privado. Essa é a causa maior do Fifagate. A atual crise da CBF é de outro tipo, é uma crise de caráter comportamental. Como é que, com todo o compliance, cuidado e auditoria, se consegue resolver um problema de desvio de comportamento do seu presidente? Foi exatamente o que aconteceu. Ele teve um desvio comportamental. Muitas vezes, a gente vê isso no setor público ou privado. As coisas vão bem, mas o governante tem problemas e destrói toda a pirâmide de sucessos e de resultados que foi construída.

Apesar disso, a CBF hoje tem uma estrutura interna – que independe do presidente – muito bem construída e profissional, com os melhores quadros do mercado. Mas, um desvio do ponto de vista do comando levou a essa nova crise que não está sendo fácil de ser superada.

CC: Como o senhor avalia a tentativa de intervenção judicial, posteriormente anulada, na direção da CBF?

WF: Acho uma conduta absolutamente equivocada. Não há jurisdição do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em relação à CBF. Além disso, esse é um processo antigo relacionado à eleição do Caboclo. Eu diria que houve uma ingerência. Uma intervenção desse tipo poderia caracterizar interferência externa ao futebol, o que a Fifa não admite. A entrada do Tribunal de Justiça poderia levar eventualmente até mesmo a uma intervenção da Fifa. Ela já fez isso em episódios semelhantes.

Reza o Estatuto da CBF, de maneira absolutamente independente, que há um voto ponderado entre clubes e federações. Você pode até questionar isso, mas é o que existe hoje. Na minha avaliação, não cabe um questionamento de fora a um sistema que é decidido internamente. O movimento da Justiça do Rio de Janeiro não tem procedência adequada no sistema futebol. A questão ainda está em aberto, mas espero que essa intervenção não venha a acontecer.

CC: A CBF está condenada a sempre repetir os mesmos erros?

WF:A CBF é uma instituição centenária como boa parte das instituições ligadas ao futebol, que é uma atividade de prática antiga e muito consolidada no Brasil e no mundo. Uma parte considerável dos clubes brasileiros têm mais de cem anos, o que mostra um enraizamento e uma capacidade de permanência muito grandes. A CBF corresponde a isso também. O futebol está entronizado na sociedade brasileira como atividade regular, permanente e sólida.

Historicamente, a CBF teve um processo de transformação a partir das gestões de João Havelange e Ricardo Teixeira, quando ganhou uma dimensão planetária, impulsionada particularmente pelos resultados em campo. Mas, a CBF, apesar dos resultados da Seleção e do seu trabalho relacionado à organização do futebol brasileiro, só passou a ter um modelo de gestão moderno nos últimos anos.

CC: Como se deu essa modernização?

WF: Eu participei ativamente disso quando nós entramos em 2015. Nós contratamos a Ernst&Young para avaliar o que era a CBF do ponto de vista da governança. Era uma entidade, do ponto de vista da gestão, muito frágil. Todo esse grande histórico de vitórias não correspondia a uma instituição forte por dentro, na sua estrutura. Sempre dependeu muito mais de uma capacidade de articulação dos dirigentes.

Se pudéssemos estabelecer um comparativo numérico, eu diria que, quando contratamos a Ernst&Young, o nível de governança era próximo de 5%. Hoje, a governança na CBF é 95%. É uma das mais importantes federações nacionais do mundo, muito respeitada pela Fifa e pela Conmebol e com capacidade de responder ao seu novo papel na área administrativa e financeira. Elevou muito o seu superávit, mas também a sua organização.

CC: Isso se refletiu no futebol?

WF: Somando todas as categorias e modalidades, em 2012 havia seis campeonatos brasileiros. Hoje em dia há mais de 20. Organizou-se toda a base, todo o futebol feminino, toda a área profissional, a área de games, que é uma modalidade extremamente moderna. Ou seja, nos últimos anos a CBF – que pega esse histórico incrível de resultados das seleções nas copas de 58, 62, 70, 94 e 2002 – se transforma em uma entidade muito forte, com ótimos níveis de governança, compliance, gestão e auditoria. A CBF entrou em um patamar muito moderno.

Ela faz isso também porque respondeu à crise do Fifagate, que mostrou que havia nos bastidores do futebol relações que não eram adequadas, contratos que eram feitos de maneira muito particular e que levavam a um enriquecimento de lideranças e de governantes. A crise do Fifagate foi muito importante para dar um grande impacto no futebol mundial e fazer a grande reforma na Fifa, na Conmebol e na CBF. O Fifagate teve um papel de renovação das práticas. Nesse período, a gente avançou muito, ganhou credibilidade, patrocinadores, aumentou o superávit. A CBF ganhou respeitabilidade depois que os escândalos foram retirados da pauta.

CC: O senhor trabalhou com Marco Polo Del Nero e com Rogério Caboclo. Para avançar, a CBF precisa romper com essa herança?

WF: Sem dúvida. O tempo todo eu sugeri ao Rogério que renunciasse. Era a hora de sair porque foram erros cometidos por ele e que ele individualmente precisaria assumir. Há um determinado momento em que você tem que recuar. Vinte e sete federações assinaram a carta pedindo a renúncia e ele não quer. A diretoria pediu e ele não quer. Os patrocinadores não querem em hipótese nenhuma a volta dele. Às vezes a autocrítica é boa, reconhecer o erro e não continuar prejudicando a CBF. Acho que o Rogério é uma página virada.

E sobre o Marco Polo já há uma decisão da Fifa, embora um recurso ainda possa ser julgado. O correto é respeitar [a Fifa]. As forças novas têm que começar a atuar de maneira livre, independente e tranquila. Não tenho falado com o Marco Polo, mas acho que ele reconhece que o papel dele já foi cumprido.

CC: E como seria essa renovação?

WF: Nessa renovação entra também o pacto que mencionei. Uma belíssima articulação entre federações e clubes pode ter como resultado a escolha de uma direção da CBF que tenha a tarefa de dar o grande salto da modernidade, que inclui educação no futebol e alta tecnologia para a gente rapidamente se aproximar dos parâmetros que têm feito a Europa nos últimos anos ser um modelo para o futebol mundial quando o Brasil ainda abriga os maiores craques do mundo. Essa é uma contradição a qual a gente precisa responder tecnológica, fisiológica, técnica, tática e financeiramente. É chegado o momento de dar um grande salto para o futuro e isso inclui a questão financeira dos clubes brasileiros.

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