Sociedade

O humor nos tempos da rebelião

Era fácil fazer piada esculachando minorias quando elas estavam longe e quietas. Hoje elas têm voz e reagem. É bom se acostumar

Personagem feminista de Regina Casé debate com botafoguense na TV Pirata: quando o humor valia a pena
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Recebi, tempos atrás, uma dica para assistir a um antigo episódio da “TV Pirata” chamado “Piada em Debate”. No esquete, uma mulher passava mal durante um voo e era atendida pela comissária de bordo. “Foi comida?”, pergunta a funcionária, ao que a mãe da menina responde: “Foi, mas casa amanhã”.

Corta a cena e aparecem numa mesa-redonda atores como Ney Latorraca, interpretando um economista da FGV, e Regina Casé, uma feminista da Unicamp, para debater o conteúdo da piada. Completavam o grupo de especialistas convidados um torcedor do Botafogo (Guilherme Karan) e um papagaio, representando a associação de personagens de piadas de papagaio. Todos tentavam ver em que pontos a piada era ofensiva, sexista ou estatal. Era um pega pra capar. Engraçadíssimo.

Pois nas duas últimas semanas, jornais, revistas, sites de entretenimento e pensadores contemporâneos em 140 caracteres fizeram mais ou menos o mesmo que a TV Pirata nos anos 1980. Colocaram a piada em debate. Primeiro, por causa do tal humor “proibidão”, evento promovido por uma casa de shows em São Paulo que obrigava o espectador a pagar 60 reais na entrada mais a assinatura de um termo se comprometendo, de antemão, a não se ofender com piadas sobre negros, gays e deficientes. Os tempos são outros: tempos em que se desconfia até mesmo do bom humor da plateia.

A história não poderia acabar bem: um tecladista (que não assinou o termo) foi chamado de macaco, chamou a polícia, o barraco se armou e a piada entrou em debate (leia mais ). Quando a história ainda esfriava, chega a notícia da morte de Chico Anysio, o grande comediante que o País já viu nascer. Não demora e uma turma, ao comentar a morte do ídolo, se ressente: bons eram os tempos em que ele fazia suas piadas e ninguém patrulhava, ninguém se ofendia. E lembravam dos Trapalhões, contemporâneos de Chico, para citar outro exemplo de humor inteligente e não-patrulhado, ingênuo até.

Os tempos eram outros e o que era aceito socialmente aceito estava – pouco por má-fé, muito por ignorância. Poucos vinham a público dizer “chega”. Mas havia. Numa entrevista antiga, Renato Russo, líder da Legião Urbana, se queixava justamente do teor de piadas que pipocavam naquela época na televisão e que reforçava, segundo ele, o estereótipo da “bichinha louca” – indiscreta, pervertida, tarada. Era um atraso, dizia. Não foi ouvido, e a inteligência que restava em programas como “TV Pirata” se dissolvia ano a ano por meio das velhas brincadeiras batidas sobre “viadagem”, cornice e tamanho do pênis de que sobravam em “Casseta & Planeta” nos anos seguintes.

Nada que não pudesse piorar. Nos anos 2000, o que ficou de pé foi o esculacho pelo esculacho, com uma ou outra piada udenista travestida de politização. Assim, na terça-feira 27, o mesmo Renato Russo descansava no caixão quando recebeu uma patada póstuma. Era um oferecimento de Danilo Gentilli, espécie de cavaleiro das Cruzadas em defesa da livre ofensa: “Hoje Renato Russo completaria 52 anos. Se usasse camisinha”.

E a piada, de novo, entrava em debate: quais os limites (do humor e da patrulha)? E tome chiadeira geral, parte dela em defesa do rapaz que diz não se importar em ser chamado de “girafa” – o que o autorizaria a chamar os negros de macaco sem grandes constrangimentos.

Mal descansou e Chico Anysio vinha à tona, citado por saudosos em defesa dos bons e dos maus, seja lá de que lado cada qual estivesse: no tempo dele podia, e era aceito.

Hoje o mundo anda chato, diz a patrulha do anti-politicamente correto. Talvez. Mas uma coisa é certa: se começasse a fazer carreira hoje, Chico Anysio não seria menos genial. Seria lembrado daqui a 80 anos como o homem que mudou o humor justamente por saber onde pisava, e por saber tirar do próprio tempo (de desigualdades e absurdos) suas lições. Sabia que seu País não era feito para os pobres, de quem se dizia um advogado – é o que ele mesmo disse em entrevista (leia clicando ) a Rosane Pavam, editora de Cultura de Carta Capital, no final de 2010, quando já estava doente. (sobre o assunto, vale a pena ler  – clicando – o artigo impecável de Rosane sobre o humor “coronelista” de Rafinha Bastos e companhia).

Com algumas exceções, como a do bravo Marcelo Adnet, a galera levada ao trono do humor atual não parece ter entendido alguns sinais dos novos tempos – e que, justamente por isso, há hoje tanta rejeição a piadas sexistas e racistas. O humor do passado, embora mais elaborado do que o simples escracho, era também imperfeito: não estava imune aos preconceitos ainda comuns de sua época.

Ainda hoje a plateia bronca, macha e em condições de pagar 60 reais por um ingresso pode não se importar ao ver alguém no palco (ou na tevê) chutando pobres, mulheres, deficientes, homossexuais…porque é bem provável não haja pobres, mulheres, deficientes e homossexuais na plateia. Mas, para azar do comediante, a piada hoje não se restringe a seu público: ela vaza para outros meios e causam indignação. É parte do jogo. Por que o mundo ficou mais chato?  Não: porque o mundo mudou. Duvido que alguma mulher visse graça, nos anos 80 e 90, ao ser retratada como a “loraburra”, ingênua, interesseira, manhosa. Hoje, basta ligar a tevê para ver que esse retrato não evoluiu. Mas as mulheres sim: elas deixaram a submissão do lar, ganharam espaço no mercado, na patota dos formadores de opinião e também nos espaços públicos e políticos. Tornaram-se lideranças, e se elegeram para prefeituras, governos de estado e Presidência da República. Por isso não só não veem graça nas brincadeiras sexistas como reagem à altura: “mulherzinha o escambau”. A indignação é a mesma, mas a reação, não: hoje elas são ouvida, gostem-se ou não os comediantes. Os tempos são outros.

Da mesma forma, negros e gays ganharam espaço, reafirmaram orgulhos, foram à luta. Saem de cena os subalternos retirados da escravidão ou das condenações morais (e medievais), que chamavam o coronel de doutor, e entram os líderes de uma batalha constante, árdua, sofrida e ainda incompleta. Pedem respeito, conquistado na marra, e avançam: chegam às ruas, repartições e universidades sem vergonha do vácuo entre o que são e o que querem que sejam. Só não chegaram às plateias de humor rançoso e moderninho. Ninguém gosta de pagar para ser esculhambado.

“Ah, então fazer piada com português pode e com negro, não?”, gritam comediantes e plateias ofendidos com as ofensas.

Poder pode. Mas experimenta fazer piada de português à brasileira em Portugal. (E ficamos por aqui, para não ter de explicar que as figuras do português colonizador e do escravo colonizado não têm o mesmo peso numa História de ferida aberta).

De toda forma, parece muito fácil fazer piada chutando quem imaginamos estar longe da roda – e não pode reagir. O que leva a pensar que o humor “proibidão” não é nada mais do que covarde. E o humor covarde só existe porque existe covardia na plateia – ela toda saudosa dos tempos em que podia dizer o que quisesse sobre negros e gays: eles estavam longe, amarrados ou calados. E maltratar, a sério ou nas piadas, todas as minorias que mal ensaiavam gritos de rebeliões. Hoje essas vozes reagem e colocam não só a piada em debate, mas a própria condição. Difícil fazer graça num país de melindrados, não? Pois se acostumem. Essas vozes vão ser ouvidas cada vez mais fortes.

 

Recebi, tempos atrás, uma dica para assistir a um antigo episódio da “TV Pirata” chamado “Piada em Debate”. No esquete, uma mulher passava mal durante um voo e era atendida pela comissária de bordo. “Foi comida?”, pergunta a funcionária, ao que a mãe da menina responde: “Foi, mas casa amanhã”.

Corta a cena e aparecem numa mesa-redonda atores como Ney Latorraca, interpretando um economista da FGV, e Regina Casé, uma feminista da Unicamp, para debater o conteúdo da piada. Completavam o grupo de especialistas convidados um torcedor do Botafogo (Guilherme Karan) e um papagaio, representando a associação de personagens de piadas de papagaio. Todos tentavam ver em que pontos a piada era ofensiva, sexista ou estatal. Era um pega pra capar. Engraçadíssimo.

Pois nas duas últimas semanas, jornais, revistas, sites de entretenimento e pensadores contemporâneos em 140 caracteres fizeram mais ou menos o mesmo que a TV Pirata nos anos 1980. Colocaram a piada em debate. Primeiro, por causa do tal humor “proibidão”, evento promovido por uma casa de shows em São Paulo que obrigava o espectador a pagar 60 reais na entrada mais a assinatura de um termo se comprometendo, de antemão, a não se ofender com piadas sobre negros, gays e deficientes. Os tempos são outros: tempos em que se desconfia até mesmo do bom humor da plateia.

A história não poderia acabar bem: um tecladista (que não assinou o termo) foi chamado de macaco, chamou a polícia, o barraco se armou e a piada entrou em debate (leia mais ). Quando a história ainda esfriava, chega a notícia da morte de Chico Anysio, o grande comediante que o País já viu nascer. Não demora e uma turma, ao comentar a morte do ídolo, se ressente: bons eram os tempos em que ele fazia suas piadas e ninguém patrulhava, ninguém se ofendia. E lembravam dos Trapalhões, contemporâneos de Chico, para citar outro exemplo de humor inteligente e não-patrulhado, ingênuo até.

Os tempos eram outros e o que era aceito socialmente aceito estava – pouco por má-fé, muito por ignorância. Poucos vinham a público dizer “chega”. Mas havia. Numa entrevista antiga, Renato Russo, líder da Legião Urbana, se queixava justamente do teor de piadas que pipocavam naquela época na televisão e que reforçava, segundo ele, o estereótipo da “bichinha louca” – indiscreta, pervertida, tarada. Era um atraso, dizia. Não foi ouvido, e a inteligência que restava em programas como “TV Pirata” se dissolvia ano a ano por meio das velhas brincadeiras batidas sobre “viadagem”, cornice e tamanho do pênis de que sobravam em “Casseta & Planeta” nos anos seguintes.

Nada que não pudesse piorar. Nos anos 2000, o que ficou de pé foi o esculacho pelo esculacho, com uma ou outra piada udenista travestida de politização. Assim, na terça-feira 27, o mesmo Renato Russo descansava no caixão quando recebeu uma patada póstuma. Era um oferecimento de Danilo Gentilli, espécie de cavaleiro das Cruzadas em defesa da livre ofensa: “Hoje Renato Russo completaria 52 anos. Se usasse camisinha”.

E a piada, de novo, entrava em debate: quais os limites (do humor e da patrulha)? E tome chiadeira geral, parte dela em defesa do rapaz que diz não se importar em ser chamado de “girafa” – o que o autorizaria a chamar os negros de macaco sem grandes constrangimentos.

Mal descansou e Chico Anysio vinha à tona, citado por saudosos em defesa dos bons e dos maus, seja lá de que lado cada qual estivesse: no tempo dele podia, e era aceito.

Hoje o mundo anda chato, diz a patrulha do anti-politicamente correto. Talvez. Mas uma coisa é certa: se começasse a fazer carreira hoje, Chico Anysio não seria menos genial. Seria lembrado daqui a 80 anos como o homem que mudou o humor justamente por saber onde pisava, e por saber tirar do próprio tempo (de desigualdades e absurdos) suas lições. Sabia que seu País não era feito para os pobres, de quem se dizia um advogado – é o que ele mesmo disse em entrevista (leia clicando ) a Rosane Pavam, editora de Cultura de Carta Capital, no final de 2010, quando já estava doente. (sobre o assunto, vale a pena ler  – clicando – o artigo impecável de Rosane sobre o humor “coronelista” de Rafinha Bastos e companhia).

Com algumas exceções, como a do bravo Marcelo Adnet, a galera levada ao trono do humor atual não parece ter entendido alguns sinais dos novos tempos – e que, justamente por isso, há hoje tanta rejeição a piadas sexistas e racistas. O humor do passado, embora mais elaborado do que o simples escracho, era também imperfeito: não estava imune aos preconceitos ainda comuns de sua época.

Ainda hoje a plateia bronca, macha e em condições de pagar 60 reais por um ingresso pode não se importar ao ver alguém no palco (ou na tevê) chutando pobres, mulheres, deficientes, homossexuais…porque é bem provável não haja pobres, mulheres, deficientes e homossexuais na plateia. Mas, para azar do comediante, a piada hoje não se restringe a seu público: ela vaza para outros meios e causam indignação. É parte do jogo. Por que o mundo ficou mais chato?  Não: porque o mundo mudou. Duvido que alguma mulher visse graça, nos anos 80 e 90, ao ser retratada como a “loraburra”, ingênua, interesseira, manhosa. Hoje, basta ligar a tevê para ver que esse retrato não evoluiu. Mas as mulheres sim: elas deixaram a submissão do lar, ganharam espaço no mercado, na patota dos formadores de opinião e também nos espaços públicos e políticos. Tornaram-se lideranças, e se elegeram para prefeituras, governos de estado e Presidência da República. Por isso não só não veem graça nas brincadeiras sexistas como reagem à altura: “mulherzinha o escambau”. A indignação é a mesma, mas a reação, não: hoje elas são ouvida, gostem-se ou não os comediantes. Os tempos são outros.

Da mesma forma, negros e gays ganharam espaço, reafirmaram orgulhos, foram à luta. Saem de cena os subalternos retirados da escravidão ou das condenações morais (e medievais), que chamavam o coronel de doutor, e entram os líderes de uma batalha constante, árdua, sofrida e ainda incompleta. Pedem respeito, conquistado na marra, e avançam: chegam às ruas, repartições e universidades sem vergonha do vácuo entre o que são e o que querem que sejam. Só não chegaram às plateias de humor rançoso e moderninho. Ninguém gosta de pagar para ser esculhambado.

“Ah, então fazer piada com português pode e com negro, não?”, gritam comediantes e plateias ofendidos com as ofensas.

Poder pode. Mas experimenta fazer piada de português à brasileira em Portugal. (E ficamos por aqui, para não ter de explicar que as figuras do português colonizador e do escravo colonizado não têm o mesmo peso numa História de ferida aberta).

De toda forma, parece muito fácil fazer piada chutando quem imaginamos estar longe da roda – e não pode reagir. O que leva a pensar que o humor “proibidão” não é nada mais do que covarde. E o humor covarde só existe porque existe covardia na plateia – ela toda saudosa dos tempos em que podia dizer o que quisesse sobre negros e gays: eles estavam longe, amarrados ou calados. E maltratar, a sério ou nas piadas, todas as minorias que mal ensaiavam gritos de rebeliões. Hoje essas vozes reagem e colocam não só a piada em debate, mas a própria condição. Difícil fazer graça num país de melindrados, não? Pois se acostumem. Essas vozes vão ser ouvidas cada vez mais fortes.

 

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