Sociedade

O Estado pode fazer uso de dados pessoais sem autorização?

Texto do anteprojeto de lei de proteção de dados pessoais prevê que órgãos e programas públicos recolham dados pessoais sem autorização

Com o anteprojeto, Bolsa-Família poderá fazer uso de informações escolares de estudantes de famílias beneficiadas
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O anteprojeto de lei para proteção de dados pessoais que está aberto para debate público no site do Ministério da Justiça prevê que a coleta, o tratamento e a transferência de dados pessoais só pode ser feito com “consentimento livre, expresso, específico e informado do titular”, ou seja, quando um site ou aplicativo pede, por exemplo, autorização para o uso de dados para efetuar um cadastro, ele precisa detalhar os usos que fará destas informações: que tipo de dados serão guardados, para quais fins serão utilizados e por quanto tempo serão armazenados. Estas exigências, no entanto, não se aplicam a órgãos da administração pública.

Isso possibilitaria a um programa como o Bolsa Família, por exemplo, fazer uso de informações escolares de estudantes de famílias beneficiadas pelo programa, já que o recebimento da bolsa está condicionado à frequência escolar. O recolhimento destes dados não exigiria o consentimento do estudante ou dos seus pais, por se tratar do cumprimento de uma obrigação legal, uma das exceções previstas no artigo 11 do anteprojeto.

Segundo Danilo Doneda, professor da UERJ e assessor do Ministério da Justiça para a redação do anteprojeto, a dispensa de consentimento para o uso de dados pessoais pelo Estado veio da necessidade de diversos órgãos públicos. “O setor privado tem de pedir consentimento como regra”, afirma Doneda, “enquanto que o Estado não. Mas observe que estabelecemos regras de transparências muito mais fortes, em relação à primeira versão do anteprojeto [de 2011]”.

Ele reitera que o Estado agora tem obrigações específicas de transparência no tratamento de dados. “Em alguns casos, existe a possibilidade de se fazer questionamentos, principalmente sobre o cruzamento de dados entre um órgão público e outro, para diferentes finalidades.”

Veridiana Alimonti, coordenadora do coletivo Intervozes, de direito à comunicação, reconhece a necessidade de o Estado utilizar dados sem consentimento “para a realização de políticas públicas e para programas sociais, no sentido de garantir e não restringir direitos do cidadão”. No entanto, ela demonstra receio de que “a medida possa ser utilizada para restringir direitos ou para perseguir [opositores] de maneira arbitrária”.

A medida parece adequada para Dennys Antonialli, advogado e diretor do InternetLab, instituto de pesquisa na área de direito e tecnologia. “Pense na organização das eleições”, exemplifica, “desde a alocação em colégios eleitorais até a própria identificação do usuário na hora de votar, tudo passa pelo uso de dados que são fornecidos na hora do cadastro na justiça eleitoral”.

Isso não significa, porém, que esses dados possam ser usados de maneira ilimitada, uma vez que, como esclarece, “o princípio da finalidade, por exemplo, consubstanciado no parágrafo primeiro do art. 11, limita o uso desses dados ao fim para o qual foram coletados”. Se não fosse assim, argumenta Antonialli, as empresas poderiam se beneficiar dos dados coletados por órgãos públicos, que muitas vezes realizam essa coleta “de maneira compulsória”.

Como exemplo, lembra a tentativa, em 2013, de se estabelecer um convênio mediante o qual o Serasa teria acesso a dados cadastrais mantidos pela justiça eleitoral. “O acordo violaria a privacidade dos cidadãos já que dados fornecidos para fins de cadastro eleitoral seriam usados para fins comerciais. Era o caso dos dados relativos à filiação, por exemplo, que dariam ao Serasa condições para estabelecer correlações nos perfis pessoais que já tinham.”

Para Katitza Rodrigues, diretora da organização de direitos digitais Electronic Frontier Foundation, não há sentido em eximir o Estado da necessidade de consentimento expresso no tratamento de dados. “Para proteger dados pessoais e garantir o direito à privacidade, as legislações devem se aplicar tanto para o setor privado quanto para o poder público”, diz.

“Qualquer interferência no direito à privacidade deve apresentar justificativas quanto a sua necessidade”, continua ela, “sem contudo prejudicar a essência deste direito; indivíduos que tiverem seu direito à privacidade violado como consequência de vigilância ou espionagem devem ter acesso à reparação efetiva e completa garantido, sem quaisquer discriminações”.

Danilo Doneda, por outro lado, entende que essas preocupações estão fora da alçada de uma lei de proteção de dados pessoais. Segundo ele, “uma lei de proteção de dados não é o instrumento mais adequado para lidar com a questão da vigilância em massa e da espionagem”, uma vez que estes mecanismos obedecem a lógica da segurança publica, da segurança estatal, e, segundo ele, “toda lei de proteção de dados encontrará restrições neste quesito”. “No fundo”, diz, “uma lei de proteção de dados não alcança as particularidades deste problema político maior”.

O Observatório da Privacidade e Vigilância é uma iniciativa do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação da Universidade de São Paulo (GPoPAI-USP) que monitora ações do Estado e de empresas que tenham impacto sobre a privacidade dos cidadãos.

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