Sociedade

O erótico não é pornô. Mas quem diz onde está a diferença?

Ecos de um debate que seis décadas atrás acabou por libertar a literatura e a arte da sanha dos moralistas (em países avançados)

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A obra Lady Chatterley’s Lover (O Amante de Lady Chatterley) foi concluída, em sua terceira e definitiva versão, em 1928, sob o cenário inspirador da Villa Mirenda, nos arredores de Florença, na Toscana, em cuja paz D. H. Lawrence se refugiara, juntamente com a alemã Frieda Weekley, sua mulher, para se restabelecer das sequelas de uma tuberculose adquirida durante a grande epidemia de gripe de 1918-1919 – mas que o paciente resistia a assumir como tal. 

Além de a ação do romance ter sido transferida para um reduto nobiliárquico do countryside britânico, tão familiar, no entanto, aos escritos de um ex-aprendiz de carvoeiro, o enredo é agressivamente autobiográfico. O escritor, sexualmente incapacitado, assim como seu alter ego, Clifford Chatterley, assistia o movimentado intercurso sexual de Frieda com um italiano lascivo e meia dúzia de outros circunstantes. Constance Chatterley era a versão mais altiva, mas igualmente libertina de Frieda.

A obra foi editada na Itália e na França, mas banida daquela Inglaterra onde resistiam os mesmos códigos vitorianos que, por exemplo, enviaram para a cadeia, o exílio e a morte o irreverente Oscar Wilde. Um cordão sanitário foi estendido nas fronteiras para que a depravada Connie não viesse, com seu furor uterino, sugerir subversivas ideias às dóceis súditas de Sua Majestade. Lawrence morreu em 1930 e sua obra-testamento teria de esperar até 1959 para merecer a devida atenção de seus conterrâneos.

A censura começou a ruir por obra de uma nova lei, aprovada naquele ano de 1959, com o enganoso título de Obscene Publications Act. Na verdade, a nova legislação foi votada a pedido da Sociedade dos Autores com o objetivo de separar o joio do trigo: ao mesmo tempo, “promover a proteção à literatura” e “fortalecer a lei concernente à pornografia”. Fazer essa distinção já era um passo em direção à luz, ainda que a decisão estivesse à mercê da subjetividade do intérprete da lei. 

De todo modo, de uma hora para outra, livros de autores escorraçados pela draconiana censura imperial, tais como Henry Miller, Lawrence Durrell e Cyril Connolly, puderam desembarcar legalmente no Reino Unido. Houve ocasiões em que, por ordem de autoridades com veemência medieval, obras foram arder em fogueiras (o perseguido James Joyce, com seu Ulisses, foi uma exceção, liberado previamente em 1936 com o interessante argumento de sua inacessibilidade, as quinhentas e tantas páginas do livro e o estilo pedregoso da escrita, tão enigmático que o magistrado não entendeu que era a uma vigorosa masturbação que Leopold Bloom se entregara ao vislumbrar a lingerie no vão das pernas entreabertas da teenager Gerty MacDowell Molly).

Lady Chatterley serviria de teste de fogo da recém-aprovada legislação e, curiosamente, um dos focos da defesa – e um dos aborrecimentos da acusação – foi o seu appeal democrático e popular. A editora Penguin ousou acreditar na nova era e publicar, em agosto de 1960, uma edição integral, sem expurgos, da exilada obra de D. H. Lawrence. A Penguin já se especializara em livros de bolso de alta tiragem. Aquele iria custar 3 shillings e 6 pence (12 pence faziam 1 shilling, 20 shillings, 1 libra)­ – uma pechincha. Esperava-se a pororoca, mas a obra foi provisoriamente embargada com base no Act que viera, por ironia, emancipar a literatura das amarras da intolerância e da ignorância.

Bastou ao procurador-geral Reginald Manningham-Buller o bosquejar sumário sobre os quatro primeiros capítulos, os menos picantes, por sinal, para se decidir em qual das duas categorias – obscenidade ou obra de arte – Lady Chatterley se enquadrava e pedir que a Penguin Books fosse processada. “Espero que seja condenada”, disse. Comportamento típico de um representante da casta do Judiciário, 100% masculina, 100% classe alta, privilegiada no acesso indiscriminado aos bens culturais, mas decidida a tutelar o gosto estético e o padrão moral das mulheres e das classes trabalhadoras.

A circulação do livro foi suspensa e as duas partes se prepararam para a histórica contenda. A Penguin convocou seu advogado, Michael Rubinstein, e se reforçou com Gerald Gardiner (cujo desempenho faria dele Lord Chancellor, isto é, ministro da Justiça do gabinete trabalhista de Harold Wilson, 1964-1970), e a acusação, que já esperava contar com a isenção curitibana do conservador juiz Byrne, ganhou o intimidador suporte de um leão do tribunal de Old Bailey, Mervyn Griffith-Jones, que fez parte do time britânico em Nuremberg.

Uma lady com um trabalhador. Na Inglaterra, era o que desafiava a noção de decência

A defesa, sabendo que a acusação viria com a cantilena da moral e dos bons costumes, tratou de se abastecer com o testemunho de escritores, artistas, juristas, intelectuais e até prelados. Não foi nada fácil. Autores consagrados tinham suas objeções à obra ou ao autor, a exemplo de W. Somerset Maugham, outros, notórias celebridades das letras, tais como T. S. Eliot, Iris Murdoch e Aldous Huxley, foram deixados como reserva técnica a se recorrer eventualmente. 

O caso mais clamoroso foi o de Doris Lessing, que refugou por considerar Lady Chatterley um momento enfermiço de Lawrence. No entanto, Doris passaria a assinar a introdução das futuras edições da obra, após perceber, numa releitura, um tremendo de um escritor e não só um homem obcecado com sexo. Ao contrário, sexo para Lawrence era sacramento, a ser desfrutado a dois, carinhosamente, com solene respeito e cuidadosa ternura. “Só uma boa trepada (fuck) salvará a Inglaterra da hipocrisia”, escreveu  Doris Lessing.

Enquanto Griffith-Jones vociferava argumentos trevosos que não fariam feio na boca do pastor Marco Feliciano ou da ministra Damares, se eles fossem capazes de, com um mínimo de sentido, encadear duas ou três frases, o advogado da Penguin buscava sensibilizar o júri com a ideia de que a Inglaterra passava vergonha com tal perseguição a uma mulher fictícia guiada pela soberania de seu desejo. “A mulher tem de viver sua vida, ou viver para se arrepender de não ter vivido” é a frase que resume a aviltada Constance. 

Um ano antes, em 1959, lembrou a defesa, até a puritana Justiça dos Estados Unidos a indultara. Qual era o problema, então? Adultério? A França se acomodara com a conduta desde Emma Bovary (de 1857). A russa Anna Karenina seguiu seus passos (em 1873). E o que os fariseus da moral têm a dizer dos frenéticos bunga-bunga do Antigo Testamento?

Proscritos. Joyce, no Ulisses, era tão hermético que o pecado driblou os moralistas. Lawrence só seria indultado 30 anos após a morte no exílio

As edições vespertinas dos jornais londrinos de 2 novembro de 1960 estamparam em manchete a absolvição da aristocrata devassa. A pretexto de proteger os lares da tentação da carne, o que transitou nas entrelinhas do discurso da Promotoria nos seis dias de audiências foi o desconforto com a quebra das hierarquias sociais tão estruturadoras da monarquia britânica. Quando Lord Teviot levou, depois, para a Câmara Alta uma moção tentando contestar a decisão judicial, ele reiterou: a mulher de um baronete que faz jogos libidinosos com um ser de estrato rasteiro não comete apenas delito penal, mas também deslize ético. 

No dia seguinte ao veredicto, livrarias e bancas de revistas amanheceram abarrotadas da edição de bolso da Penguin. Até a noite, 200 mil livros tinham sido vendidos. E a Inglaterra, graças a uma ficção, acordava para uma década que iria revolucionar os costumes – os anos 60 dos Beatles e dos Stones, da minissaia de Mary Quant e de tantas conquistas cruciais aos direitos humanos, incluindo o afrouxamento na legislação sobre a homossexualidade e o aborto, o fim da pena de morte e a abolição da censura no teatro.

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