Sociedade

O desafio da maternidade

Uma jovem mãe se negou a participar da corrente do Facebook e falou a real: “Amo meu filho, odeio ser mãe”. Ela tem direito a isso.

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Deveria ser uma hora de lazer, mas contabilizei, ao todo, quatro tentativas de homicídio.

Primeiro quando o grandão da turma decidiu empurrá-lo do escorregador.

Depois quando o amiguinho pegou as duas pás da caixa de areia e tentou acertar um golpe duplo na altura das suas orelhas.

Na última, me distrai ao celular e não percebi que o suposto melhor amigo abria dedinho por dedinho do meu filho, como se usasse uma alavanca, para ver se ele caía para poder, enfim, herdar o balanço.

Até que ele aderiu à moda – justamente com quem nada tinha com a história. Ao ver uma menina se aproximar, ele pegou um punhado de areia e jogou no cabelo dela. Diante do meu desespero, ela começou a chorar e ele, a rir.

Eu olhava para o lado na tentativa de encontrar seus pais. Nada. Quando o choro parou, ele arremessou areia no olho dela. Gritei com ele. Ele chorou. Ela voltou a chorar. E eu queria apenas me enterrar naquela areia em posição fetal e dormir até que ele completasse 20 anos.

Em casa, tento entender a ansiedade das respirações ofegantes. Minhas horas de descanso são as horas extras no trabalho. Passamos apuros, deletamos os momentos de sono, usamos as primeiras ou as últimas horas do dia para fazer coisas banais, como ver filmes ou abrir o jornal, passamos a fazer compras em dez minutos porque, caso contrário, ele se joga no chão, esperneia, grita, se bate e tenta derrubar tudo o que encontra pela frente.

Mas não é isso o que me incomoda.

O que mais me incomoda é que eu deveria estar feliz com tudo isso. Eu realmente deveria estar feliz pelo senhor ter me concedido o domingo para ir ao zoológico dar pipoca aos macacos – o problema é que, quando ele vê macacos, quer puxar o rabo. Ou subir na árvore.

E, por estar mais cansado do que feliz, passo horas do dia me penitenciando pelo péssimo pai que sou.

Minha ranhetice começa quando encontro outros pais que acabam de ter filhos. É como adentrar numa orbita em que qualquer assunto fora criança é proibido. Quantas horas dorme? Come legumes? Ainda assiste a Peppa? Onde vai ser a festinha? Quanto você pagou? Você acha isso normal? Não é o máximo?

A bateria de perguntas é, via de regra, um terreno assentado para a questão crucial: quando vem o segundo?

Em tese eu deveria gostar de todas essas perguntas. Da troca de experiências levantadas pelos mesmos amigos que, anos atrás, levantavam a sobrancelha pra saber minha nota na prova.

Eu deveria estar feliz em falar sempre no diminutivo. Em ver meu filho ser tratado como bibelô por amigos e parentes que o mandam posar, sorrir, comer todo tipo de bobagem e entopem o Facebook de fotos dele sem qualquer autorização.

Eu deveria estar, mas não estou. Estou tenso, em dúvida, mais cansado do que satisfeito.

E desconfio que só vou lidar melhor com esse desconforto quando admitir, para meu inconsciente, que não decidimos ter filhos como um cálculo de preenchimento ou satisfação. Que ele não é um investimento que logo trará retorno afetivo e existencial. Que nossa relação não precisa ser uma fabrica de neurose se as coisas não saírem como planejamos.

Falta explicar para o mundo.

Mas de tudo o que mais me incomoda nessa história não são as tentativas de homicídio no parquinho ou a obrigação de fazer de uma manhã no parque um comercial de margarina.

O que mais me incomoda é o consolo de ser “apenas” pai. Sim, não é exatamente a tarefa mais simples que já assumi, mas nada se compara à pressão enfrentada pela mãe. A começar pela métrica que separa as boas e as más mães a partir da produção de leite materno – ainda que seu filho, prematuro, tenha passado as primeiras semanas em uma incubadora, e nosso único contato físico acontecia pelas mãos.

Ao fim das visitas eu ia para casa, e a mãe era encaminhada a uma sala onde deveria, literalmente, ordenhar o próprio leite por meio de uma bombinha. Era um novo parto por sessão, e a dificuldade da missão era compensada por palavras de incentivo do tipo “pensa no teu filho”, “se você o ama o suficiente você consegue” (tente urinar com um incentivo desse no seu ouvido para entender o drama) ou com mandingas e alimentos com base no milho (tipo pipoca e canjica) que estouravam estômago da mãe e só ampliavam a distância entre a autoestima e a maternidade ideal. Uma distância agravada cada vez que alguém identificava na mamadeira a prova material de um fracasso.

Passada a fase da amamentação, à mãe não faltavam dicas, telefonemas de amigos e familiares de todos os lados para saber como andava a saúde do menino. Qualquer espirro ou choro fora de hora era sintoma de um descuido. Qualquer cara feia quando alguém o entupia de bolacha era respondida com “mas coitado, ele tem vontade”.

As vontades são criadas, assim, por visitas esporádicas que jamais trocaram fralda, e você supostamente deveria amar tudo isso.

No pico da agonia, eu podia sair, nadar, pescar, jogar bola e até encher a cara quando precisava desanuviar. Ninguém me telefonaria perguntando se eu estava louco. Eu jamais seria o puto que pariu e na bagagem jamais levaria a culpa, a lista de satisfações, as perguntas de sempre. Como quando voltou à dança e quase desistiu depois de ouvir uma bateria de perguntas constrangedoras sobre “como ela tinha coragem de deixar uma criança em casa”. “Ele não pede por você?”. “Ele não chora?”. “Você não sente pena?”.

Aos poucos passamos a reproduzir, dentro de casa, as assimetrias que tentamos combater fora dela. “Homem não leva jeito”. “Homem não faz duas coisas ao mesmo tempo”. “Homem não acorda quando criança chora”.

Ela não.

Ela deveria sorrir pela manhã depois de ser acordada a cada três horas. Deveria estar linda, leve e realizada para as sessões de fotos da família doriana para postar no Facebook no dia das mães. E sorrir ao responder, pela milésima vez, se pretende MESMO seguir trabalhando ao fim da licença maternidade.

Durante a semana, uma jovem mãe se negou a participar, no Facebook, de uma corrente sobre as delícias sem dores da maternidade e decidiu falar a real: “Amo meu filho, odeio ser mãe”. Ela tem direito a isso. Tem direito a compartilhar com outras mães não apenas o peso da maternidade, mas o peso da obrigação de parecer feliz com toda a pressão existente em um dos períodos mais duros, confusos e inseguros da vida.

Ela tem direito a manifestar o desconforto pela pressão. Ela tem direito a não explodir. A não achar que há algo de errado nela por não ser feliz o tempo inteiro. De reivindicar o direito a descobrir, por si, as pequenas alegrias das novas relações criadas dentro de casa.

O que enlouquece não são as tarefas. As funções. A responsabilidade. Tudo isso é duro, mas passa. O que enlouquece são os outros. São os que veem na maternidade – e na distância entre a vida ideal e a vida vivida – a chance de minar a autoestima e a liberdade de circulação de alguém que não é (nem deveria ser) só mãe, mas mulher. Foi-se o tempo em que as palavras eram sinônimos – e, por extensão, um destino inevitável rumo ao confinamento do lar e das obrigações que nós, homens, não queremos fazer.

É preciso reconhecer a coragem de uma mãe que expõe esse desconforto – pois até o direito a reclamar tentaram tirar dela. O desconforto dela não é com o filho, mas com um destino imposto a ela a partir da maternidade. Há quem prefira atacá-la e guardar as dores numa comporta de autoengano e ressentimento. Pobres pais. Pobres filhos.

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