Sociedade

Ô Brasil, vê se acorda para a sua gente

No sertão do Vale do São Francisco, lembrei de Ariano Suassuna e Aziz Ab’Saber. Vivos, estariam tristes, vendo o que estão fazendo do País

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“Vou te contar/ Os olhos já não podem ver/ Coisas que só o coração pode entender/ Fundamental é mesmo o amor/ É impossível ser feliz sozinho”.

O deficiente visual que conversa comigo num boteco em Juazeiro (Bahia), semiárido nordestino, não conhece a música e os versos de “Wave”, de Tom Jobim e Milton Mendonça, em 1967. Se usasse o título em português, “Vou te Contar”, creio que ele continuaria não sabendo.

Enquanto tomamos cervejas e cachaça de baixo teor alcoólico (52º), o cego (sim, ele não acha o termo incorreto) descreve contornos e belezas do Rio São Francisco, desde a nascente na Serra da Canastra até a foz no Oceano Atlântico.

Como sabe tanto se nunca enxergou? Creio que os versos acima respondem.

Nasceu em Carinhanha, Bahia, perto da divisa com Minas Gerais, de pais lavradores. Caso de perguntar o que mais poderia ter sido. Técnico em informática?

Desconfiados de que o menino não enxergava, aos 3 anos, os pais o levaram ao posto de saúde em Bom Jesus da Lapa, município próximo e de maiores recursos. Depois de um exame, o médico foi científico:

– É. Não enxerga mesmo.

– E?

– Cura? Não dá para saber. Talvez em Brasília, Belo Horizonte, Salvador, com exames mais sofisticados, consigam dizer alguma coisa.

– Obrigado, doutor.

É um povo que vive agradecendo. A Deus, principalmente. Creio que o próprio Divino se pergunta por quê.

Durante um tempo, ajudou os pais na pequena lavoura e criação de cabras. Cego, achava difícil ir à escola. O que lhe faltava em visão sobrava em cognição auditiva. Bom na viola, facilmente decorava músicas, letras, cordéis. Bastavam o radinho e alguém que lesse para ele. A tudo filmava com ouvido e coração. Dos contornos do Velho Chico, foi o pai lhe contou.

Embora tenha sido batizado Divino Alves dos Santos, nessas paragens só o conhecem por “Cego Dedéu”.

– Por que Dedéu?

– Por que Divino? Eu perguntava aos meus pais e eles respondiam: “de Deus, de Deus, de Deus”, e assim virou Dedéu.

– E o “Cego”, precisa?

– Aqui sim. Quando artistas, somos valorizados pela capacidade de mesmo sem enxergar trazermos felicidade, alegria, enfeites. Isso enobrece o Nordeste.

Lamenta ainda não ter conseguido percorrer os pouco mais de 2.800 km do rio. São muitos os perigos do caminho, mas afirma a paixão ser maior que o medo. De ônibus seria como ir de São Paulo a Fortaleza.

Peço que ele cante uma trova antes de sair. Que eu conheça e possa cantar junto. No primeiro acorde da viola, um pássaro preto pousa leve no meu ombro. Nas passagens do estribilho, o bicho volteia pelo salão, retorna, e fica quase colado ao instrumento, a cabeça meneando no ritmo da toada. Penso que o som o faz lembrar do trinado da plúmbea patativa, de canto mais refinado e harmonioso do que o seu.

– Dedéu, você já chegou até Assaré, no Ceará?

– Não. Dizem que daqui até lá, de ônibus, são 400 quilômetros.

– Não é muito, Dedéu. É a terra do poeta Patativa. Um dia, com mais tempo, te levo até lá. Também quero conhecer Assaré.

Paula, a garçona

Serve no bar e no restaurante onde me hospedo. Não gosto da palavra garçonete. Lembra chacrete, lucianete, faustete, sei lá, essas coisas chulas. Diferente das dignidade e simpatia dessa sertaneja baiana, que deixou suas folias semiáridas entre iguanas e plantas catingueiras para atravessar o São Francisco e, do outro lado da ponte, servir Petrolina e Pernambuco.

Se o capitalismo quisesse, naquela aridez poderia explorar 25 espécies vegetais, entre palmas, xiquexiques, aroeiras, umbuzeiros, caroás, juazeiros, mandacarus e cactos. Sem qualquer dano ambiental, o bioma da região serviria usos medicinal e veterinário, biocombustíveis, construções, plantas forrageiras.

Mas, não. A atual etapa capitalista prefere o comodismo rentista. Talvez, Paula criança, poderia lá ter permanecido com seus pais e iguanas.

Jovem, bonita, esguia, postura de princesa de cordel, preferiu servir em hotel. Gosta. Conta à minha sócia, Viviane, que o emprego lhe permite malhar para manter a silhueta, brincar o carnaval nordestino e as festas regionais, dançar forró e namorar.

No jantar, peço um vinho da região. Primeiro, traz um balde com gelo e a garrafa nele incrustrada. Passados alguns minutos, retira a garrafa do balde e, usando daqueles saca-rolhas de sommelier do Sul Maravilha, retira a rolha, enrola num guardanapo o produto das vinhas franciscanas, põe um dos braços para trás, e me serve delicada quantidade à degustação. Aprovo. Ela serve a taça de Viviane e completa a minha.

– Parabéns, Paula. Tudo direitinho.

– Fiz um curso numa vinícola daqui.

Ô Brasil, vê se acorda para a sua gente.

Esportes

Colégios, municípios, bairros, corporações, começaram a disputar a Copa TV Grande Rio de Futsal. Trindade, Orocó, Garapa, Jutaí, Curaçá, conhecem?

Na abertura, fui convidado para hastear a bandeira do Brasil. Cantei o hino pensando no escritor Ariano Suassuna (1927-2014) e no geógrafo e professor Aziz Ab’Saber (1924-2012), incansáveis defensores das cultura e biodiversidade brasileiras.

Vivos, estariam tristes, vendo o que estão fazendo do País.        

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