Diversidade

O Brasil vai continuar a tratar o aborto como um crime?

A descriminalização da interrupção da gravidez será tema de audiência pública do STF nos próximos dias e reacende o debate na sociedade

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A descriminalização do aborto será tema de uma audiência pública do Supremo Tribunal Federal (STF) entre 3 e 6 de agosto e tem gerado grande repercussão nos grupos pró e contra aborto.

As audiências são parte do processo que julga uma ação que pede a exclusão do Código Penal dos artigos (124 e 126), os quais definem como crime a interrupção da gravidez, tanto para a mulher, quanto para quem a ajuda a abortar. Para além do resultado no STF – ainda sem data para ser julgado em plenário – o debate em torno do tema deve marcar um novo momento sobre a discussão do aborto, realidade da vida privada das mulheres, mas ainda cercada de moralismo na vida pública.

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O principal argumento da ação movida pela ONG Anis-Instituto de Bioética e pelo PSOL é o de que a proibição viola direitos fundamentais previstos na Constituição, como o direito à dignidade, à cidadania e à vida, levando em conta que milhares de mulheres colocam suas vidas em risco ao buscar a interrupção ilegal da gravidez.

A antropóloga e pesquisadora Debóra Diniz, da Anis, afirma que é correto o STF analisar o caso, levando em conta que o código penal é anterior a Constituição de 1988. Uma das funções da suprema corte, diz ela, é fazer a revisão constitucional de práticas legislativas que ferem os direitos fundamentais. A pena para a mulher que aborta é de um a quatro anos de reclusão.

Os grupos favoráveis à legalização do aborto a partir de serviços de saúde pública acreditam que essa é a melhor maneira de encarar a questão, por ser a “única maneira de garantir esse direito às mulheres negras e pobres que não tem dinheiro para alcançar a autonomia do corpo pela via do mercado privado.”

Intolerância e perseguição

Tão logo o STF agendou as audiências públicas, Débora passou a sofrer perseguição pela internet de grupos e indivíduos contrários ao aborto. No dia 18 de julho, o assédio contra a antropóloga saiu das redes, e um grupo – ainda não identificado – a acusou na saída de um evento. Desde então Débora teve de sair de Brasília – cidade onde vive. O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios pediu sua inclusão no Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos do governo federal.

Débora é uma das mais respeitadas pesquisadoras sobre aborto. Dentre os estudos mais relevantes, está a Pesquisa Nacional de Aborto – PNA, publicada em 2010, que mostrou que uma em cada cinco mulheres até os 40 anos já fez pelo menos um aborto, o que representa cerca de 5 milhões de mulheres.

Segundo dados do Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde, aproximadamente 500 mil mulheres recorrem ao aborto clandestino todos os anos. Um dos relatórios que irá subsidiar a decisão do STF aponta que total de tratamentos feitos pelos SUS em complicações consequentes de um aborto – como hemorragias e infecções -, 75% são de interrupções voluntárias feitas ilegalmente. Ao menos 4.455 mulheres morreram de 2000 a 2016.

“Estamos na região do mundo que mais aborta, e também na que mais tem dispositivos punitivos para criminalizar a prática. Ser o lugar que mais persegue a mulher que aborta não resolver nem a questão do aborto, e nem protegeu o sofrimento da mulher”, afirma a antropóloga.

Em pelo menos outros dois momentos o STF agiu de modo parecido, chamando especialistas da área para deliberar sobre temas sensíveis: no caso da interrupção da gravidez para fetos com anencefalia, e na discussão sobre células tronco. “Há uma linha histórica da corte para julgar esse tema, mas nunca antes tínhamos feito a pergunta de maneira clara: vamos ou não vamos mandar para a cadeira a mulher que aborta?”

Mobilização social

O movimento de mulheres de todo o País deverão se mobilizar no período de 2 a 8 de agosto, quando será votado no Senado argentino o projeto de legalização do aborto no país vizinho, já aprovado na Câmara dos Deputados. Em Brasília as mulheres convocam caravanas para o Festival Pela Vida das Mulheres de 2 a 6 de agosto. Elas farão um acampamento na área externa Museu Nacional Honestino Guiumarães, onde haverá debates e a transmissão por um telão da audiência pública, que será transmitida pela TV Justiça. No dia 8 elas chamam passeatas nas capitais.

Para Silvia Camurça, da Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e Pela Legalização do Aborto, é necessário que as mulheres abracem a causa que faz parte de suas vidas, seja por medo, por preocupação ou por terem sido vítimas de alguma violência.

“Só com expressiva maioria será possível transformar o cenário provocado pela clandestinidade. Hoje as mulheres são coibidas e reprimidas de se posicionar favoravelmente ao aborto, embora a gente saiba que assim como a maternidade, a menstruação, o sexo, é parte da vida de toda mulher minimamente saudável. É parte da vida sexual e de ter uma gravidez não desejada, até porque os métodos para se evitar falham muitas vezes.”

A posição do movimento que se concentrará em Brasília é a de que o aborto é um ato de responsabilidade da mulher. É sobre ela que se recairá a responsabilidade daquela vida em gestação. “É uma decisão ética interromper uma gravidez no seu início do que dar sequência sabendo que não haverá condições para aquela vida se desenvolver de maneira saudável depois de nascer.”

A frente surgiu em 2008 por articulação de diversas feministas depois que uma clínica ginecológica em Goiás onde se praticava o aborto espontâneo foi deflagrada pela polícia, com ampla cobertura  da imprensa. A ação expôs milhares de prontuários das mulheres; muitas foram indiciadas e presas. “Foi um marco na sanha legalista e punitivista contra as mulheres”, conta Silvia.

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