Política

O Brasil entristece o cacique Raoni, e a causa é Jair Bolsonaro

Governo não atende pessoas de paz, de bem e que defendem a floresta, diz o veterano líder indígena

Cacique Raoni (Foto: Alessandro Dantas)
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É início da noite da terça-feira 18, e o cacique Raoni aguarda numa das saídas do Congresso pela condução que levará ele e alguns irmãos indígenas ao aeroporto, de onde iriam à Bahia. Enquanto espera, o veterano líder dos povos tradicionais brasileiros admite: está triste. A causa tem nome, sobrenome e nenhum decoro ou empatia, personalidade exposta naquela manhã mais uma vez por Jair Bolsonaro, ao insultar uma repórter da Folha.

“Estou triste”, diz Raoni, segundo um tradutor caiapó a seu lado. “Pelo que o governo Bolsonaro está fazendo contra nós indígenas do Brasil. E não é só para o Brasil, não é só para os indígenas, é para o mundo.” Sensação estranha, talvez inédita, para o nonagenário. “O governo Bolsonaro não atende as pessoas que são de paz, as pessoas que são de bem, as pessoas que sempre defenderam a floresta. Todos os governos que passaram, eles me atendem, eu falo com eles, eles falam comigo.”

Raoni está com uma camiseta verde com a inscrição “Minha ideologia é floresta em pé, água limpa, ar puro”. A condução chega, e ele responde que, sim, ainda tem esperança de o Brasil e a vida de seus irmãos melhorarem. E aproveita para uma cutucada, digamos, familiar. “Alguns indígenas estão manifestando a favor do projeto dele (Bolsonaro), mas a maioria não está aceitando. Estou triste porque ele (o presidente) está fazendo coisa errada.”

Três horas e meia antes, Bolsonaro havia discursado no Palácio do Planalto, na posse do novo ministro da Casa Civil, o general Walter Souza Braga Netto. Com um minuto no púlpito, seu chefe do cerimonial, o diplomata Carlos Alberto Franco França, coloca dois indígenas atrás do presidente, para que apareçam nas imagens das tevês. A dupla estivera mais cedo com o ex-capitão e acompanhava o evento no fundo do salão palaciano.

“Hoje pela manhã no (Palácio da) Alvorada, por 30 minutos, conversei com um pouco mais de 20 etnias”, afirma Bolsonaro. “Que foram para lá demonstrar”, continua, “apoio ao nosso projeto que nasceu no Ministério das Minas e Energias, com o almirante Bento (Albuquerque), para regulamentar o artigo 231 da Constituição. Nós não queremos mais, e eles também não querem, ser tutelados pelo Estado. Eles não querem mais como alguns ainda vivem.”

A tentativa bolsonarista de regulamentar o artigo 231 é a principal razão de Raoni ter ido ao Congresso. O artigo faz parte do capítulo constitucional chamado “Dos índios”. Garante-lhes direito de organização social, costumes, tradições, crenças religiosas. No parágrafo 2, diz que lhes cabe “usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”. Bolsonaro propôs ao Parlamento, porém, um liberou geral na mineração, hidreletricidade e garimpagem nessas terras.

O projeto foi anunciado em 5 de fevereiro, durante um oba-oba no Planalto para festejar 400 dias de governo. É contra a proposta que lideranças indígenas, Raoni entre elas, e deputados de uma frente em defesa dos povos tradicionais promoveram um ato na Câmara na terça-feira 18. Ato seguido de uma reunião com o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a quem apelaram, em vão, para devolver o texto ao Planalto. Mas até que Maia topou deixar o projeto de lado por um tempo.

 

“Nós, povos indígenas, somos 5% da população mundial e nós conseguimos proteger 82% da biodiversidade viva que ainda existe no planeta. Então, se ameaça a vida dos povos indígenas, se ameaça o modo de vida dos povos indígenas, o mundo inteiro está ameaçado”, disse na Câmara, ao criticar o projeto, a maranhense Sonia Guajajara, de 45 anos, candidata a vice-presidente pelo PSOL em 2018 e hoje no comando da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

Para a deputada por Roraima Joênia Wapichana, de 46 anos e do partido Rede, única parlamentar indígena, o projeto viola a Constituição e uma convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a 169. Essa convenção determina que toda decisão de governo ou legislativa que interfira na vida de comunidades indígenas requer consulta e consentimento prévios delas. O que não aconteceu com o liberou geral da mineração e garimpagem.

“Ocorrem invasões nas terras indígenas yanomamis, hoje há mais de 20 mil garimpeiros nessas áreas”, afirmou Joênia. “Os yanomamis estão sendo ameaçados pela contaminação de mercúrio que é jogado nos rios.”

Bolsonaro deve ter assinado o projeto com satisfação. Ele próprio é garimpeiro. Desde os anos 1980, como contou em 2017 à Folha. “O garimpo, de vez em quando, eu pratico ainda. Não causo nenhum crime ao meio ambiente. O garimpo é um negócio que está no sangue das pessoas”, afirmou à época. Seu nome não estava na lista de 2.955 pessoas e cooperativas então autorizadas a garimpar do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM).

Há mais transgressão no currículo do ex-capitão. Foi multado pelo Ibama em 2012 por pesca ilegal em uma área protegida na região de Angra dos Reis, no litoral fluminense. Tomou uma multa de 10 mil reais. Ao assumir o poder, foi à forra. O fiscal que lhe multara, José Augusto Morelli, foi demitido em março de 2019 do cargo de Chefe do Centro de Operações Aéreas da Diretoria de Proteção Ambiental. “Vingança pessoal”, comentaria Morelli posteriormente.

Um mês após a degola, o ex-capitão saiu em defesa de transgressores ambientais. Em um vídeo gravado dentro do avião presidencial pelo senador Marcos Rogério (DEM), proibiu o Ibama de punir madeireiros que roubavam árvores de uma floresta nacional no estado do parlamentar, Rondônia. “Não é pra queimar nada, maquinário, trator, seja o que for, não é esse procedimento, não é essa a nossa orientação”, disse o presidente.

Acobertamento de transgressores ambientais, esforço para rachar o movimento indígena, fim da demarcação de terras deles, tentativa de liberar mineração e garimpagem nessas áreas, menosprezo de Raoni perante o mundo durante a Assembleia Geral das Nações Unidas em 2019… Não faltam motivos para a tristeza do velho cacique.

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