Sociedade

O Brasil entra no mapa da medicina psicodélica

Quatro pacientes brasileiros participarão de estudo que usa substância contida no “ecstasy” para tratamento de estresse pós-traumático

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Em 2007, após 15 meses de combate no Iraque, o então sargento norte-americano Tony Macie voltou para casa e foi diagnosticado com transtorno do estresse pós-traumático (TEPT), distúrbio psiquiátrico que atinge parte das pessoas expostas a situações de violência extrema.

Os medicamentos, aliados a sessões de psicoterapia, não aliviaram a ansiedade de Macie, tampouco o ajudaram a restabelecer uma conexão com sua família e seus amigos, e seu quadro evoluiu para “resistente ao tratamento”.

Foi então que ele soube de um estudo desenvolvido pela Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies (MAPS), organização sem fins lucrativos voltada para o financiamento de pesquisas na chamada “ciência psicodélica”.

Fundada em 1986 nos EUA, a MAPS aposta em psicoterapia assistida com uso de MDMA (sigla para 3,4-metilenodioximetanfetamina) para tratamento do TEPT severo. A substância é conhecida por estar presente nos comprimidos de “ecstasy”.

Pacientes que desenvolvem TEPT podem conviver com o medo durante anos, o que não raro resulta em isolamento social, depressão e até suicídio. A partir dos estudos com MDMA, os pesquisadores descobriram que, sob efeito da droga, é possível reviver traumas sem sentir medo. No cérebro, o MDMA diminui a atividade na amígdala, região central para o processamento do medo e que é superativada em pacientes com TEPT, além de aumentar a atividade no córtex frontal, responsável pelo raciocínio e pela cognição. A substância também reduz a ansiedade e aumenta a confiança e a empatia.

“O MDMA me fez sentir compaixão e amor, e isso tornou a terapia altamente eficaz”, disse o ex-sargento Macie em um depoimento em vídeo. “Eu diria que estou curado porque estou vivo. Não evito as pessoas e procuro me distanciar do ódio e das emoções negativas.”

Quatro pacientes brasileiros diagnosticados com TEPT serão selecionados para participar, ainda neste ano, da pesquisa internacional sobre o uso terapêutico de MDMA. Além dos EUA, o estudo está em andamento no Canadá, na Suíça e em Israel. Com as etapas pré-clínica e de segurança em humanos (fase 1) já concluídas, a pesquisa está agora na fase piloto (fase 2), que foi iniciada em 2010 e deve ser concluída em 2016. É neste estágio que entra o Brasil.

De acordo com os primeiros resultados, publicados em 2011 pela MAPS, 83% dos portadores de TEPT severo não apresentavam mais os sintomas do transtorno após o tratamento com MDMA. Os outros 17% ainda preenchiam critérios diagnósticos, mas com menor intensidade.

Segundo o neurocientista Eduardo Schenberg, responsável por trazer o estudo para o Brasil, a terapia com MDMA permite ao paciente uma ressignificação do trauma. “É como se o MDMA libertasse o paciente do pânico paralisante gerado pelo trauma, e ele consegue falar mais abertamente, mais honestamente e mais profundamente sobre o que aconteceu”, diz Schenberg, que é diretor do instituto Plantando Consciência, organização que estuda os efeitos terapêuticos de substâncias como ayahuasca

O número de casos de estresse pós-traumático é alto em metrópoles do País. Pesquisa divulgada em 2013 pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) aponta que 90% dos moradores das cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro já vivenciaram ao menos uma situação de violência (assalto, sequestro, estupro, tiroteio etc). Desses, 10% desenvolveram sintomas de TEPT.

Os quatro pacientes brasileiros serão selecionados pelo psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, livre-docente da Unifesp, que também fará a avaliação final. As sessões com MDMA ocorrerão em Goiânia, no Centro de Educação e Psicoterapia do casal de psicólogos Álvaro Jardim e Dora Jardim, com acompanhamento do médico Bruno Rasmussen Chaves.

Durante todo o tratamento, os pacientes farão 12 sessões de psicoterapia sem MDMA e outras três com o uso da substância, conforme o seguinte protocolo: primeiro serão três sessões preparatórias, sem MDMA; depois, cada sessão sob efeito da droga (que pode durar até oito horas) será seguida de três sessões de integração, sem a substância.

Por facilitar a empatia e intensificar emoções positivas, o MDMA é também chamado de “droga do amor” e chegou a ser usado em terapia de casais antes da proibição, na década de 80. Os pesquisadores defendem que, com a substância, a relação terapeuta-paciente adquire outro nível de intimidade e confiança.

“O que faz a terapia funcionar é o vínculo que o paciente cria com o terapeuta”, afirma o psicólogo Jardim. Ele e a mulher foram treinados pelo psiquiatra checo Stanislav Grof, que é referência nas pesquisas sobre estados alterados de consciência e desenvolveu uma técnica conhecida como respiração holotrópica. Grof também conduziu mais de 2 mil sessões terapêuticas com uso de LSD (ácido lisérgico) nos anos 60, em pacientes de todos os tipos.

De acordo com Eduardo Schenberg, um aspecto pouco mencionado é o de que a proposta da medicina psicodélica é uma proposta de “menos droga”.

“Os remédios psiquiátricos atuais são desenvolvidos e receitados para uso diário, enquanto a proposta da terapia psicodélica é de poucas doses, com intervalos de semanas ou meses. Então você troca centenas de comprimidos, ao longo de meses ou anos, por poucos comprimidos durante um período terapêutico intensivo”, diz o pesquisador.

Quando consumido em pequenas doses, o MDMA não representa riscos aos pacientes, muito diferente dos comprimidos de “ecstasy”, que muitas vezes não contêm MDMA. “Já foram identificadas mais de cem substâncias nesse tipo de material ilegal que é consumido como se fosse MDMA”, diz Schenberg.

Para a pesquisa com MDMA, o neurocientista conseguiu arrecadar R$ 53 mil por meio do site de financiamento coletivo Catarse. Assim que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) vistoriar a clínica e autorizar a entrada da substância – o MDMA será importado de um laboratório suíço –, a MAPS promete doar US$ 15 mil.

A realização do estudo no Brasil já foi autorizada pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), do Ministério da Saúde. Em setembro, a equipe viaja para fazer um curso de treinamento em Los Angeles, nos Estados Unidos, que inclui sessões de terapia com MDMA.

Após a conclusão do estudo populacional (fase 3), que será submetido a centenas de pacientes de diferentes nacionalidades a partir de 2017, a ideia é regulamentar a terapia com MDMA para transtorno do estresse pós-traumático até 2021, no Brasil e no mundo.

Proibição atrasa a ciência

O potencial terapêutico dos psicodélicos é reconhecido, mas a classificação política das drogas não é baseada em critérios científicos. Estudos recentes apontam que o LSD, por exemplo, pode ser eficaz no tratamento de pacientes com depressão ou em fase terminal. Símbolo da contracultura nos Estados Unidos, o ácido foi proibido já no final da década de 60; com menos visibilidade, o MDMA só foi proibido a partir de 1985.

Schenberg conta que, antes da proibição, um juiz dos EUA chegou a recomendar que o MDMA fosse classificado na categoria 3, que restringe o uso recreativo, mas libera a pesquisa e o uso medicinal. “Mas a DEA [Drug Enforcement Administration, órgão de controle de narcóticos] ignorou a recomendação do juiz e colocou o MDMA na categoria 1, que nega os potenciais terapêuticos. Então criou-se uma mentira deliberada, que infelizmente é recontada nos livros de psiquiatria.”

O impacto da proibição das drogas foi brutal para a ciência. Levantamento divulgado em 1996 pelo jornal científico Neuropsychopharmacology revela que, se entre 1955 e 1968 os artigos acadêmicos sobre psicodélicos apontavam efeitos majoritariamente terapêuticos e positivos, a partir de 1969 há uma avalanche de estudos que concluem que tais substâncias são perigosas. Um dos ápices desse movimento ocorreu após 1971, quando o então presidente dos EUA Richard Nixon declarou “guerra às drogas”.

Para o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, a falta de informação e o preconceito ainda prejudicam a pesquisa acadêmica, o que é mais complicado em uma sociedade “bastante reacionária” como a brasileira.

“Muitas substâncias ilegais têm potencial terapêutico. Eu venho trabalhando com isso na universidade desde 1995, e essas drogas são vistas como de uso prejudicial muito em cima dessa política proibicionista“, diz Silveira. “A gente mal consegue avançar nas pesquisas por causa do preconceito que as drogas ilícitas trazem consigo. É como se fosse proibido até pesquisar.”

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