Sociedade

O bando de loucos e os operários do time

Quando o torcedor diz “aqui é Corinthians”, ele avisa que não quer firula nem em campo nem na vida. O time campeão do mundo entendeu isso

O bando de loucos e o time de operários. Foto: Galeria de Alessandra.A.
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Não lembro quando ouvi a expressão pela primeira vez. Tenho a impressão de que se tornou mais recorrente a partir de 2007. Era um período tenso para a equipe, que acabava de ser rebaixada para a Série B do Campeonato Brasileiro e deixava seus torcedores no alvo de dardos com todo tipo de provocação. Ainda assim, um movimento de resgate parecia encaminhado pelos torcedores até mesmo quando o futebol estava longe da conversa principal. Era mais ou menos assim. Você recebia uma visita, avisava que não tinha mais nada elaborado a oferecer a não ser cerveja quente de lata e ouvia: “Não tem importância. Aqui é Corinthians”.

Ou então quando alguém ficava em dúvida entre seguir a pé em horas suspeitas na rua ou chamar o táxi. “Vamos a pé, aqui é Corinthians”.

Ou quando alguém narrava os feitos de quem acordava cedo, pegava o trem, o ônibus e ralava 18 horas por dia por um salário mínimo. “Ele é muito Corinthians”.

De repente “ser Corinthians” se tornava sinônimo de simplicidade, desprezo às cerimônias, aos oba-obas, às formalidades. “Aqui não tem frescura”, pareciam dizer os torcedores, corintianos ou não.

A torcida assumiu essa frase, aparentemente num momento de baixa autoestima, como um mantra pela sobrevivência: “Tudo bem que não estamos na Série A, mas estamos bem, somos ‘Corinthians’”. Se alguém perguntasse como um time conseguia lotar um estádio em partidas contra rivais, em tese, de segunda categoria, a resposta estava ali. Não no hino, curiosamente, que fala em espírito altaneiro e esporte bretão, mas em cantos recentes mais diretos, facilmente assimilados e adaptados, com evocação à favela, ao bando de louco. Mesmo quem nunca pisou numa favela cantava. Era uma afirmação da identidade contida num grito de incentivo.

Em algum momento desta trajetória o clube entendeu o recado. E, literalmente, jogou para a torcida. De repente, jogadores do estilo chinelinho escassearam. O time parecia não ter vergonha de mandar bicão pra frente. Assim, voltou sem grandes dificuldades para a Série A em 2008. Mas o espírito da B, no melhor dos sentidos, permaneceu. Quando o Corinthians anunciou a principal contratação de sua história, foi o pentacampeão Ronaldo que teve de se adaptar ao clube, e não o contrário. Quando fechou o negócio, ele foi à tevê anunciar que acabava de se tornar mais um louco no banco de loucos. Jogou para a torcida. Naquele tempo, o que não faltavam eram piadas sobre o time, os “favelados” do time, e a maior estrela do time – uma estrela aparentemente decadente, fora de forma, envolta em polêmicas e desconfiança.

Foi com este espírito que o Pânico na TV, à época no auge, foi à rua ouvir gente banguela, gaga, despenteada e zarolha para mandar um recado ao novo ídolo. Encontrou um sujeito que, assaltado pela provocação, mandou o famoso “Ronaldo, brilha muito no Corinthians”. Muita gente riu (a ideia do programa era essa). Mas muita gente viu ali a manifestação mais humilde que um sujeito humilde, que faria qualquer coisa pelo time, poderia desejar.

E de repente o Brasil inteiro, corintiano ou não, tinha o nome de “Ronaldo” e “brilha muito” na ponta da língua.

O fim da história é conhecido. Em trajetórias semelhantes, Ronaldo e equipe deixaram de lado as desconfianças, corresponderam em campo e se sagraram, já em 2009, campeões paulistas e da Copa do Brasil. Em 2010, ano do centenário, o clube passou em branco, mas passou longe de ser coadjuvante. Por pouco não se sagrou campeão brasileiro, título que viria no ano seguinte com o paciente técnico Tite.

Obviamente, entre o time que venceu a Série B e o que se sagrou campeão do mundo, houve mudanças significativas. O time ficou mais caro. Ganhou o reforço de nomes experientes. Mas aquele espírito seguiu ali. Tanto que, hoje, parece difícil imaginar um jogador como o Ronaldinho Gaúcho, com suas firulas, cabeleiras e passes sem olhar pra bola, nesta equipe. Mas um Danilo, sério, concentrado e reto, funciona.

O torcedor que reparar vai ver poucos “moleques” desembarcarem em Guarulhos com a taça do Mundial. Se reparar ainda mais, vai perceber que, a começar pelo ótimo e discreto goleiro Cássio, a maioria dos jogadores parece pessoas normais, que batem cartão, cumprem horários no batente como operários e vão para casa ver a família. Paulinho é, talvez, o melhor exemplo disso. Ele não tem firula. Não tem provocação. Não tem estrelismo. Não tem soluções na cartola. Ele é, como se diz…Corinthians. E passaria tranquilamente desapercebido no meio da torcida. Calhou de ser jogador, e um dos mais importantes da história do clube.

A postura foi tão assimilada que, numa partida do Brasileiro de 2011, o goleiro Julio César, então titular, jogou no sacrifício, com um dedo quebrado. Ficou em campo até o apito final. Após o jogo, perguntado se sentia dores, respondeu que não, que ali “era Corinthians”.

Essa postura, talvez, tenha sido o principal ingrediente de uma equipe que não será esquecida tão cedo. Exceto um messianismo exagerado (pois ninguém tem o monopólio da manifestação genuína e todas as torcidas fazem barulho e têm sua multidão de loucos), o corintiano, seja ele da favela ou não, de fato se viu reconhecido num time de operários.

Em outras palavras: torcida e jogadores parecem falar a mesma língua. Num ano de conquistas inquestionáveis, esta parece ser a mais importante. Nenhum outro clube conseguiu expressar melhor esta identidade e criar em volta dela uma marca. Quando o torcedor diz “aqui é Corinthians”, ele deixa claro que não aceita firula – nem em campo nem na vida. O time entendeu isso e acaba de se sagrar campeão do mundo.

Não lembro quando ouvi a expressão pela primeira vez. Tenho a impressão de que se tornou mais recorrente a partir de 2007. Era um período tenso para a equipe, que acabava de ser rebaixada para a Série B do Campeonato Brasileiro e deixava seus torcedores no alvo de dardos com todo tipo de provocação. Ainda assim, um movimento de resgate parecia encaminhado pelos torcedores até mesmo quando o futebol estava longe da conversa principal. Era mais ou menos assim. Você recebia uma visita, avisava que não tinha mais nada elaborado a oferecer a não ser cerveja quente de lata e ouvia: “Não tem importância. Aqui é Corinthians”.

Ou então quando alguém ficava em dúvida entre seguir a pé em horas suspeitas na rua ou chamar o táxi. “Vamos a pé, aqui é Corinthians”.

Ou quando alguém narrava os feitos de quem acordava cedo, pegava o trem, o ônibus e ralava 18 horas por dia por um salário mínimo. “Ele é muito Corinthians”.

De repente “ser Corinthians” se tornava sinônimo de simplicidade, desprezo às cerimônias, aos oba-obas, às formalidades. “Aqui não tem frescura”, pareciam dizer os torcedores, corintianos ou não.

A torcida assumiu essa frase, aparentemente num momento de baixa autoestima, como um mantra pela sobrevivência: “Tudo bem que não estamos na Série A, mas estamos bem, somos ‘Corinthians’”. Se alguém perguntasse como um time conseguia lotar um estádio em partidas contra rivais, em tese, de segunda categoria, a resposta estava ali. Não no hino, curiosamente, que fala em espírito altaneiro e esporte bretão, mas em cantos recentes mais diretos, facilmente assimilados e adaptados, com evocação à favela, ao bando de louco. Mesmo quem nunca pisou numa favela cantava. Era uma afirmação da identidade contida num grito de incentivo.

Em algum momento desta trajetória o clube entendeu o recado. E, literalmente, jogou para a torcida. De repente, jogadores do estilo chinelinho escassearam. O time parecia não ter vergonha de mandar bicão pra frente. Assim, voltou sem grandes dificuldades para a Série A em 2008. Mas o espírito da B, no melhor dos sentidos, permaneceu. Quando o Corinthians anunciou a principal contratação de sua história, foi o pentacampeão Ronaldo que teve de se adaptar ao clube, e não o contrário. Quando fechou o negócio, ele foi à tevê anunciar que acabava de se tornar mais um louco no banco de loucos. Jogou para a torcida. Naquele tempo, o que não faltavam eram piadas sobre o time, os “favelados” do time, e a maior estrela do time – uma estrela aparentemente decadente, fora de forma, envolta em polêmicas e desconfiança.

Foi com este espírito que o Pânico na TV, à época no auge, foi à rua ouvir gente banguela, gaga, despenteada e zarolha para mandar um recado ao novo ídolo. Encontrou um sujeito que, assaltado pela provocação, mandou o famoso “Ronaldo, brilha muito no Corinthians”. Muita gente riu (a ideia do programa era essa). Mas muita gente viu ali a manifestação mais humilde que um sujeito humilde, que faria qualquer coisa pelo time, poderia desejar.

E de repente o Brasil inteiro, corintiano ou não, tinha o nome de “Ronaldo” e “brilha muito” na ponta da língua.

O fim da história é conhecido. Em trajetórias semelhantes, Ronaldo e equipe deixaram de lado as desconfianças, corresponderam em campo e se sagraram, já em 2009, campeões paulistas e da Copa do Brasil. Em 2010, ano do centenário, o clube passou em branco, mas passou longe de ser coadjuvante. Por pouco não se sagrou campeão brasileiro, título que viria no ano seguinte com o paciente técnico Tite.

Obviamente, entre o time que venceu a Série B e o que se sagrou campeão do mundo, houve mudanças significativas. O time ficou mais caro. Ganhou o reforço de nomes experientes. Mas aquele espírito seguiu ali. Tanto que, hoje, parece difícil imaginar um jogador como o Ronaldinho Gaúcho, com suas firulas, cabeleiras e passes sem olhar pra bola, nesta equipe. Mas um Danilo, sério, concentrado e reto, funciona.

O torcedor que reparar vai ver poucos “moleques” desembarcarem em Guarulhos com a taça do Mundial. Se reparar ainda mais, vai perceber que, a começar pelo ótimo e discreto goleiro Cássio, a maioria dos jogadores parece pessoas normais, que batem cartão, cumprem horários no batente como operários e vão para casa ver a família. Paulinho é, talvez, o melhor exemplo disso. Ele não tem firula. Não tem provocação. Não tem estrelismo. Não tem soluções na cartola. Ele é, como se diz…Corinthians. E passaria tranquilamente desapercebido no meio da torcida. Calhou de ser jogador, e um dos mais importantes da história do clube.

A postura foi tão assimilada que, numa partida do Brasileiro de 2011, o goleiro Julio César, então titular, jogou no sacrifício, com um dedo quebrado. Ficou em campo até o apito final. Após o jogo, perguntado se sentia dores, respondeu que não, que ali “era Corinthians”.

Essa postura, talvez, tenha sido o principal ingrediente de uma equipe que não será esquecida tão cedo. Exceto um messianismo exagerado (pois ninguém tem o monopólio da manifestação genuína e todas as torcidas fazem barulho e têm sua multidão de loucos), o corintiano, seja ele da favela ou não, de fato se viu reconhecido num time de operários.

Em outras palavras: torcida e jogadores parecem falar a mesma língua. Num ano de conquistas inquestionáveis, esta parece ser a mais importante. Nenhum outro clube conseguiu expressar melhor esta identidade e criar em volta dela uma marca. Quando o torcedor diz “aqui é Corinthians”, ele deixa claro que não aceita firula – nem em campo nem na vida. O time entendeu isso e acaba de se sagrar campeão do mundo.

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