Entrevistas

‘Não tenho mais ilusão de revolução. Minha afirmação é a vida cotidiana’

Aos 80 anos, a fundadora do Movimento Tortura Nunca Mais Cecília Coimbra fala de ditadura, política e militância

Cecília Coimbra, fundadora do Tortura Nunca Mais (Foto: Arquivo Pessoal)
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Mãe, avó, militante dos direitos humanos, professora universitária, cientista política e psicóloga: Cecília Coimbra é uma potência. A fundadora e principal referência do grupo Tortura Nunca Mais completa 80 anos de vida. Para celebrar a data, lançou um novo livro: Fragmentos de Memórias Malditas – Invenção de Si e de Mundos, onde traz lembranças suas e de outros sobre os anos de chumbo e reflete sobre sua passagem pelo “inferno”, como se refere aos porões do DOI-Codi, onde permaneceu presa e torturada por três meses.

Por conta da pandemia, Cecília está há um ano isolada no meio do mato em Nova Friburgo, município da região serrana do Rio. Lá, encontrou no contato com a natureza a inspiração para o livro, onde fez questão de registrar os gestos de solidariedade – mesmo aqueles feitos por militares do DOI-Codi – recebidos em meio à realidade de medo, tortura e morte da ditadura: “Quis mostrar que a vida sempre insiste, a vida sempre vaza e, mesmo no inferno, ela continua existindo”.

Mas, não foi só isso. Com boa parte da vida dedicada à luta para revelar os horrores da ditadura e trazer a público seus crimes e criminosos, Cecília se motivou a escrever também pelo momento atual do Brasil “onde imperam o negacionismo, o fascismo e o genocídio planejado”.

Nesta conversa com CartaCapital, a escritora fala da onda de revisionismo em relação ao golpe e sobre até onde vai o apoio dos militares ao presidente Jair Bolsonaro. “Vemos uma corrupção enorme e uma família mafiosa. É óbvio que as Forças Armadas não querem se alinhar com isso”, diz.

Cecília critica a “série de limitações” que a Comissão Nacional da Verdade teve e tem no Brasil – “um primeiro passo muito tímido” – e não revela muito ânimo com a situação política do país: “No ano que vem é votar no menos pior”, diz.

Confira, a seguir, os destaques da entrevista.

CartaCapital: Em tempos de fake news e narrativas falsas, tem sido comum um discurso revisionista a respeito do golpe de 64 e da ditadura. O que a senhora tem a dizer para quem hoje fala coisas como “os militares em 64 salvaram a democracia”?

Cecília Coimbra:: O governo foi eleito pelas fake news. O Brasil, mais do que nunca, utiliza muito isso em um discurso que não chega a ser revisionista, e sim negacionista. Não é uma revisão o que eles querem fazer em relação a 64. Eles querem negar 64 e repetir aquele mesmo discurso – que a gente ouvia durante o período da ditadura civil-militar – de que salvaram a democracia porque havia uma ameaça de golpe comunista.

Há também o fato de não se estudar isso, né? Nos governos ditos mais progressistas se começou a falar um pouco desse período, mas, de um modo geral, o tema sempre esteve fora dos currículos oficiais. O período da ditadura civil-militar no Brasil não é estudado nas escolas. Quando eu escrevo esse livro, estou querendo trazer isso para os dias de hoje. Para mostrar que se a gente não sabe História não sabe o que está acontecendo. Para os dominantes, é importante que a gente desconheça a História.

Mesmo o Chile com Pinochet conseguiu instituir uma comissão da verdade mais avançada do que a brasileira. A Comissão da Verdade brasileira é a última e a mais limitada

CC: O livro que a senhora acaba de lançar tem um título sugestivo. Por que memórias malditas?

CC: Porque, de um modo geral, as memórias que questionam qualquer poder instituído são malditas para o Estado. No momento em que uma história se transforma em história oficial, retira-se dela todo o seu teor revolucionário, libertário e de ruptura. Todas as memórias daqueles que efetivamente tentaram produzir rupturas, trazer outros modos de existir neste mundo, mostrar que outros modos de viver são possíveis são memórias perigosas para o poder. Por isso são malditas.

A história oficial do Brasil, que traz o Duque de Caxias como o grande pacificador, é um exemplo disso. O Caxias foi o maior assassino de todos os movimentos sociais durante o Império. Ele é considerado hoje o patrono do Exército. O Estado enaltece certos personagens e demoniza a grande maioria, que fica fora da história oficial. Por isso o nome Memórias Malditas.

CC: O que te motivou a escrever?

CC: O momento que a gente está vivendo, onde imperam o negacionismo, o fascismo e o genocídio planejado. Onde o slogan é “fazer morrer e deixar morrer”. É a necropolítica da qual o pensador africano Achille Mbembe falava, é o Estado que quer a morte e que prega a morte. A ideia do livro surgiu quando eu vi o documentário Narciso em Férias, do Caetano Veloso, onde ele fala do momento em que o guarda abriu a cela para deixar que ele abraçasse a sua então companheira Dedé e depois esse soldado foi preso. Aí eu me lembrei que tive vários momentos de solidariedade de soldados do DOI-Codi, apesar do treinamento brutal a que eram submetidos. Então, eu quis falar sobre esses gestos de solidariedade que tivemos naquele inferno em que a gente viveu.

O que eu quis mostrar nesse livro é que a vida sempre insiste, a vida sempre vaza e mesmo no inferno ela continua existindo. Como diz Ítalo Calvino no belíssimo livro As Cidades Invisíveis: o importante no inferno é a gente saber o que não é inferno. 

CC: Na Argentina a ditadura é lembrada a cada ano de maneira crítica. No Brasil, o esquecimento venceu? Qual a avaliação da senhora sobre o trabalho da Comissão da Verdade?

CC: Entre os países latino-americanos que passaram por ditaduras e pelo terror de Estado, o Brasil foi o mais atrasado em relação à questão da reparação. A Argentina, logo no início do governo Alfonsín [1983-1989], instaurou sua comissão da verdade, que era dirigida por um grande intelectual, Ernesto Sábato. Foi isso, inclusive, que inspirou o nome Tortura Nunca Mais. A Argentina foi a que mais avançou na reparação e na luta para que se contasse essa história e para que todos os assassinos e genocidas fossem conhecidos.

Já o Brasil foi o último a fazer uma comissão da verdade, ainda assim porque foi pressionado pela Organização dos Estados Americanos. Houve na OEA um processo sobre a questão da Guerrilha do Araguaia movido pelo Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, pela Comissão dos Familiares de Mortos e Desaparecidos de São Paulo e pelo Centro de Justiça Internacional. Era uma coisa mantida como tabu. São quase 70 companheiros desaparecidos, fora a população local, e isso nunca foi registrado e reconhecido pelo Estado brasileiro. Se trucidou dezenas de pessoas, se utilizou napalm naquela região. 

Nós ganhamos esse processo no Comitê Interamericano de Direitos Humanos e no governo Dilma veio a sentença que ampliava para todos os mortos e desaparecidos, e não somente no Araguaia. A toque de caixa se fez a chamada Comissão Nacional da Verdade, que surge como uma forma de dar alguma resposta, ainda extremamente tímida e limitada, a essa sentença da OEA. Mesmo o Chile com Pinochet conseguiu instituir uma comissão da verdade mais avançada do que a brasileira. A comissão da verdade brasileira é a última e a mais limitada.

CC: A verdade será um dia, de fato, revelada?

CC: Eu escrevi um artigo que mostra os compromissos assumidos desde a Lei de Anistia até os dias de hoje – não só com os militares, mas também com as elites políticas e empresariais – para que certos acordos permanecessem durante os governos civis, inclusive nos governos ditos populares, os governos do PT. Havia realmente acordos ali que foram cumpridos. Ou seja, a maioria dessas histórias e memórias ficou maldita, não foi oficializada.

Sem dúvida, a Comissão da Verdade foi um passo importante, mas apenas um primeiro passo muito tímido Mas colaboramos, apoiamos, fizemos nossos depoimentos, encaminhamos toda a pesquisa que havíamos feito nos arquivos do Dops no Rio de Janeiro. A relação de nomes de torturadores que nós tínhamos colhido durante anos de pesquisa também foi enviada. Só que, infelizmente, os acordos estavam em vigor.

Eu lembro que, quando a Dilma foi eleita presidente, um repórter me perguntou o que eu, como mulher que também foi torturada, teria a perguntar para ela. Eu apenas pedi que as marcas invisíveis da tortura presentes em nós pudessem falar mais alto que os acordos que haviam sido feitos por todos os governos civis desde 1985.

CC: E o que pensa sobre o abandono da comissão pelo governo Bolsonaro?

CC: O Bolsonaro é a extrema-direita fascista. Então, mesmo um passo pequeno como a Comissão Nacional da Verdade tem que ser retirada do ar, esvaziada, extinta. A questão dos direitos humanos foi entregue a uma evangélica. Sem maiores comentários porque isso é de uma mediocridade imensa. É algo indizível. A gente não tem palavras para descrever o que essa ministra representa para os direitos humanos. Seria cômico se não fosse trágico.

CC: Alguns analistas dizem que a demissão dos comandantes das Forças Armadas é uma demonstração de que as tropas não se alinham às aventuras golpistas de Bolsonaro. Outros que tudo não passa de encenação e “saída à francesa”. O que pensa a senhora?

CC: O Bolsonaro sempre foi um cara maldito também nas Forças Armadas. Ele é um lunático, com todo o respeito aos loucos. Ele é uma pessoa extremamente desequilibrada e desqualificada para qualquer coisa, até para ser um militar. Os próprios militares não têm respeito por ele. O que a gente está vendo é uma corrupção enorme e uma família mafiosa. É óbvio que as Forças Armadas não querem se alinhar com isso.

Grande parte das Forças Armadas está fora disso porque a hierarquia fala mais alto. Por outro lado, tem também aqueles que adoram mamar nas tetas do Estado, adoram se locupletar com essas corrupções. Nós temos hoje no governo Bolsonaro um número muito maior de militares em todos os ministérios do que tivemos no período da ditadura civil-militar. Parte se locupleta, mas a maior parte não quer participar disso. Mas, não porque seja democrática. Eles continuam achando que “a Revolução de 64” veio salvar o Brasil do comunismo. A gente sabe que as instruções que continuam a ser dadas aos jovens oficiais na Academia Militar das Agulhas Negras ainda é assim. 

CC: É como se as Forças Armadas no Brasil ainda vivessem no passado…

CC: Há duas grandes questões que não foram mexidas pelos governos civis pós-ditadura. Uma foi a formação dos jovens oficiais e os treinamentos a que eles são submetidos. A Doutrina de Segurança Nacional, com a criação da figura do “inimigo interno”, ainda está presente no treinamento desses jovens oficiais. Não existe treinamento democrático, isso sequer foi mexido. É um tabu nunca colocado pela grande imprensa. 

Outra grande questão são os serviços de informação e segurança, que sequer foram desmontados. Eles mudaram de nome, criaram outras caras e maquiagens, mas continuam funcionando de uma forma cada vez mais moderna. Muitos desses oficiais que estão no governo Bolsonaro participaram da missão de paz, entre aspas, no Haiti, matando o povo haitiano.

Aí se insere a questão dos autos de resistência, uma coisa criada em 1962 e muito utilizada na época do esquadrão da morte e durante todo o período da ditadura. Os autos de resistência acontecem em número altíssimo hoje em dia no Brasil. As pessoas são mortas e sequer um processo é aberto contra a polícia. E também a figura do desaparecido, que o Brasil importou da Guerra da Argélia e exportou para as demais ditaduras latino-americanas.

CC: Qual a avaliação da senhora sobre a atual conjuntura política do Brasil? Tem alguma esperança nas eleições do ano que vem?

CC: Não é que eu pregue o voto nulo, acho que não é por aí. Acho que sempre temos de escolher o menos pior. É óbvio que hoje em dia a gente tem que se unir contra o genocídio e o fascismo que avançam avassaladoramente. Mas, eu acho que de um modo geral não podemos ter ilusões de que vamos ter um governo salvador. Salvador, tanto à esquerda quanto à direita, nunca é bom. Criar mitos e heróis enfraquece o poder popular e a auto-organização do povo. No ano que vem eu acho que é votar no menos pior.

Eu não acredito que, enquanto a gente viver sob o regime capitalista, vá existir alguma soberania política. Há países que vão continuar sendo subordinados ao grande capital, esteja ele onde estiver.

Podemos colocar mais nossas energias na micropolítica, nos grupos autônomos que se formam. Nós temos experiências em várias partes do planeta de grupos autogestionários que vivem de forma independente do Estado. São pequenas experiências. Eu não estou falando em revolução. Eu não tenho mais essa ilusão. A minha afirmação é a vida do cotidiano da gente, a afirmação da nossa potência a cada momento, a cada dia, a cada minuto nas nossas relações e sociabilidades.

CC: Como é completar 80 anos, após tanta vida e militância e encarar a barra do Brasil de hoje?

CC: Realmente nunca pensei que nos meus 80 anos eu pudesse viver um governo fascista, um momento de genocídio, de ódio, intolerância, vingança. A cultura do desrespeito, da desqualificação, a cultura da morte se impõe. Mas, eu acho que é apostar naquela ideia que eu trago do filósofo Baruch Espinoza, que é a questão de viver uma vida ética. Por uma vida onde a gente possa afirmar a potência da vida.

É importante que a gente procure afirmar os nossos bons encontros, que nos alimentam e alegram. E evitar os maus encontros, que nos entristecem, desqualificam, envenenam e despotencializam. Acho que é a afirmação a todo momento – nos pequenos lugares aonde vamos, na vida pessoal, nos nossos relacionamentos, nas políticas de amizade que fazemos – de uma vida potente. Essa potência que há em cada um de nós e que nenhum poder consegue tirar.

A gente pode se inventar. Isso não é individualismo, pois cada um de nós é um coletivo. São nesses encontros que a gente se produz e produz o outro, que a gente consegue inventar e se criar continuamente. Porque a vida é metamorfose, como diz o Krenak. O contato aqui com a natureza me mostra muito bem isso. A vida é metamorfose o tempo todo, e nós somos também. Estamos sempre sendo e isso é muito bonito.

CC: Valeu a pena a luta em busca de um Brasil mais justo (em todos os sentidos) e solidário? O Brasil vale a pena?

CC: Valeu a luta e eu não me arrependo de nada do que fiz. Faria tudo de novo. Eu acho que a solidariedade e a amizade dos companheiros foram fundamentais na minha vida. Eu não gosto de falar de país, gosto mais de falar de planeta. Falar de pátria me lembra muito essa coisa xenófoba da extrema-direita. Eu não acho que seja por aí, sou mais internacionalista. Acho que devemos pensar em um planeta onde seja viável uma vida potente em cima daquilo tudo que já falei. Ser de esquerda não é só pensar em si ou naquele que está próximo. É pensar planetariamente, não só no humano, mas em todos os seres vivos deste planeta porque nós fazemos parte da natureza. Devemos pensar num planeta mais justo, fraterno e solidário. É um sonho, mas eu acho que micropoliticamente a gente pode produzir isso.

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