Sociedade

“Não se trata de um conflito entre ricos e pobres”

Sociólogo Ignacio Cano adverte contra a dramatização e a vitimização do crime conhecido como “arrastão” no Rio. Ele considera preconceituosa a abordagem policial de adolescentes pobres em ônibus.

A intervenção indiscriminada é uma confissão de incompetência policial.
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Por Renata Malkes, do Rio

Confusões nas praias, consideradas o maior lazer de milhares de cariocas, sempre chamam a atenção. Mas o sociólogo Ignacio Cano, pesquisador do Laboratório de Análise de Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), adverte contra a dramatização e a vitimização excessiva do crime conhecido como arrastão. O fenômeno não é novo, mas preocupante.

Ele considera preconceituosa a abordagem policial de adolescentes pobres em ônibus nos arredores de bairros nobres e adverte que a falta de uma resposta adequada do poder público pode desencadear algo mais grave: a polarização entre ricos e pobres, além de revolta e enfrentamento entre grupos de jovens na cidade.

DW Brasil: O Rio tem um histórico de incontáveis crimes bárbaros que não despertaram qualquer revolta na população. Por que os arrastões têm esse impacto tão forte no inconsciente carioca?

Ignacio Cano: A praia é o lazer supremo do carioca, um espaço democrático, de custo zero, onde qualquer pessoa pode ir. Por isso, qualquer ameaça contra este espaço é considerada uma profanação de um lugar sagrado, mais até do que um crime contra a própria residência do indivíduo. O impacto do arrastão é enorme, acaba sendo muito maior do que a própria vitimização dessas ações. Em geral, os crimes cometidos num arrastão não são muito graves, são pequenos delitos, furtos de objetos de pequeno valor e alguns ataques contra banhistas. Mas, por acontecerem naquele espaço, provocam pânico.

DW: Com o pânico, muita gente já está deixando de ir à praia. É possível reverter isso, sobretudo quando estamos a menos de um ano dos Jogos Olímpicos?

IC: Qualquer problema agora, próximo às Olimpíadas, tem um peso político e econômico muito grande. É importante lembrar que os arrastões não se tratam de um conflito entre ricos e pobres nas praias, como muitos querem pensar. O problema é muito mais complexo. Existe uma dramatização excessiva da situação. Não é apenas o pessoal do Leblon [bairro nobre na Zona Sul do Rio] que é vitimado pelos arrastões, não são só os ricos. Não é uma questão de pobres contra ricos. Muitas vítimas nas praias são trabalhadores das classes menos abastadas, moradores das periferias. Muitas vezes os assaltos começam já dentro dos ônibus, ou seja, muitas vítimas são outros jovens pobres.

WD: E de que forma a polícia deveria agir?

IC: É ingênuo acreditar que se pode acabar com os furtos em grandes aglomerações, mas é preciso conter os atos violência e os roubos que geram pânico. Para isso, gostaria de ver a polícia adotar uma estratégia de prevenção eficaz. Entrar nos ônibus, revistar ou apreender jovens de forma indiscriminada é um tratamento preconceituoso e ineficiente. Os jovens que praticam atos criminosos são uma porcentagem ínfima dos que frequentam a praia. Não se pode alegar vulnerabilidade social para prender jovens aleatoriamente pela simples suspeita de que eles possam vir a cometer crimes devido a sua aparência, origem ou classe social. A polícia deveria entrar nas redes sociais, monitorar grupos suspeitos, comprar informações, recorrer à Inteligência para saber quem são, de fato, os bandidos. A intervenção indiscriminada é uma confissão de incompetência policial.

DW: A atuação controversa do poder público também tem mobilizado grupos de jovens da classe média que prometem se unir para fazer justiça com as próprias mãos. Isso é curioso numa cidade onde o jovem, tradicionalmente, vive bastante alheio às questões políticas e sociais. O senhor vê aí um motivo de preocupação?

IC: É um fenômeno muito preocupante. Vejo a ação de justiceiros como uma resposta visceral. Linchamentos e promessas de linchamentos não são uma postura política. Se isso não for coibido rapidamente, teremos o risco de assistir a um conflito entre grupos de jovens que, se ameaçados, podem começar a recorrer às facas, às armas ou mesmo algo pior. A atuação do poder público gera revolta dos dois lados. Os jovens pobres são discriminados por uma política perversa, e entre os ricos, essa mesma política perversa gera a ideia de que prevenção é isso [retirar os pobres dos ônibus]. Isso não é forma de se prevenir a violência, mas uma ação preconceituosa e ilegal.

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