Sociedade

‘Não há imunidade para presidente em exercício’, diz advogado de Raoni em Haia

Na queixa apresentada à Promotoria, o pedido é que o presidente seja investigado por crimes contra a humanidade

Foto: Reprodução
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O cacique brasileiro Raoni Metuktire perdeu a paciência e finalmente entrou com uma ação contra o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, no Tribunal Penal Internacional, em Haia, na Holanda, no último dia 22 de janeiro.

Ele acusa o chefe de Estado de assassinato, extermínio e escravidão de indígenas na Amazônia em um documento de 65 páginas, com 21 provas anexadas, assinado pelo experiente advogado francês William Bourdon, um “habitué” de Haia, à frente de processos emblemáticos na Corte Penal Internacional, como o apresentado contra o presidente do Guiné, Alpha Condé, em 2020.

William Bourdon falou com exclusividade sobre o processo contra Bolsonaro, seu timing e suas implicações, jurídicas e de facto.

“A Corte Penal Internacional prevê, em seu estatuto, que não existe imunidade para chefes de Estado em exercício perseguidos por crimes internacionais. Não há mais imunidade nesse sentido, é muito simples. [O ex-presidente sérvio Solobodan] Milošević [condenado pelo massacre de Kosovo na Guerra da Bósnia] foi um exemplo pioneiro disso, foi perseguido e entregue ao tribunal em Haia”, lembra.

“Esse regime jurídico, que faz com que não exista mais imunidade para chefes de Estado em exercício, foi retomado pela Corte de Haia em seu estatuto. Se daqui a algum tempo, o gabinete do Procurador [da Corte Penal Internacional] estimar que Bolsonaro é perseguido por crimes contra a humanidade, sim, ele poderá receber um mandato de prisão e ser condenado a uma pena de vários anos. Sim, isso é possível”, afirma o advogado.

Na queixa apresentada por Bourdon à CPI, o advogado pede à Promotoria para abrir uma investigação contra o presidente brasileiro por crimes contra a Humanidade.

O processo está nas mãos de Fatou Bensouda, procuradora-geral de Haia, que não tinha obrigação de validar o pedido na época.

Mas o Brasil ratificou o tratado do TPI em 2002, dando à Corte Internacional poderes e jurisdição para investigar crimes cometidos em seu território, e por seus cidadãos. Ao ratificar o documento, Brasília abriu mão da imunidade de seus chefes de Estado se forem considerados culpados de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra ou agressão.

Timing da acusação contra Bolsonaro em Haia

O jornal Le Monde lembra, no entanto, que desde 2018 “o Brasil não paga a sua cota para o orçamento deste tribunal”, financiado pelos seus Estados membros, e tem “um passivo de € 18 milhões”.

Bourdon afirma que, apesar disso, o processo corre normalmente contra Bolsonaro em Haia e que uma primeira resposta da Procuradoria à queixa apresentada em 22 de janeiro por Raoni e pelo cacique Almir Surui, chefe da tribo dos Paiter-Surui, é esperada para os “próximos dois meses”.

Perguntado se as atuais notícias políticas do front brasileiro, como a eleição de aliados de Bolsonaro para a presidência da Câmara e do Senado, acelerariam o processo em Haia, Bourdon diz que “tudo o que valoriza uma tomada de poder por parte de Bolsonaro que não seja favorável aos brasileiros ou às comunidades indígenas, assim como a possibilidade de um impeachment que se torna cada vez mais longínqua, tudo isso, se devidamente documentado, pode se tornar um elemento de pressão para acelerar o processo na CPI”, avalia.

“Hipoteticamente não é impossível, embora não seja um processo visível. Deve haver, com certeza, personalidades do cenário político brasileiro que já analisam os riscos de levar a cabo as políticas de Bolsonaro. Teremos notícias da evolução desse processo no dia a dia, estamos muito vigilantes”, avisa. “É nosso dever atualizar esse dossiê constantemente em Haia”, diz.

No entanto, Bourdon acredita que uma resposta definitiva sobre o processo de Raoni contra Bolsonaro em Haia não ocorra antes de 2022. “Temos pelo menos um ano até a Corte chegar a uma decisão”, diz.

Histórico

O advogado francês conta que o primeiro passo da queixa contra Bolsonaro foi efetuado há cerca de um ano.

“Na linguagem da Corte Penal Internacional, depositamos uma ‘comunicação’ pelas vítimas estimadas de crimes contra a humanidade no Brasil. A Procuradoria nos procurou depois de alguns meses para dizer que uma primeira avaliação havia sido feita dos méritos desse documento”, explica Bourdon.

“Outras questões serão agora avaliadas, por exemplo, se os crimes que levantamos são de competência jurídica da Corte Internacional. Estimamos que sim, claro. Fizemos um trabalho considerável de documentação neste sentido, é um dossiê bastante sólido”, considera.

“O que restam são questões subsidiárias, mas a CPI pode declarar a qualquer momento que as autoridades judiciais brasileiras não possuem a competência ou a vontade de julgar este crime”, diz o advogado.

“Cada dia que passa o Brasil se precipita mais em um regime despótico, onde direitos públicos são violados. Conseguimos documentar em nossa argumentação que o acesso a um juiz é quase impossível para a maioria desses crimes”, conta.

“Eu me sinto muito honrado e orgulhoso de defender Raoni neste processo, assim como o outro cacique. É uma responsabilidade enorme”, diz Bourdon. “Nosso escritório fez um trabalho coletivo considerável com juristas brasileiros, franceses e norte-americanos durante este processo”, conta.

“Tive o privilégio de conhecer Raoni. Ele e os outros chefes indígenas perderam toda e qualquer ilusão a respeito de Bolsonaro. A Procuradoria [em Haia] é seu último recurso. Esperamos uma reação positiva da Procuradoria antes do verão [julho e agosto, no Hemisfério Norte] e que depois o novo procurador designado continue o trabalho num ritmo consequente”, finaliza o advogado francês.

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