Sociedade

Mulheres e cidades: o 8 de março e o direito à vida urbana

Uma cidade democrática precisa de políticas públicas para as mulheres

Marcha das mulheres negras contra o racismo, a violência e pelo bem viver (Foto: Tiago Zenero/PNUD Brasil)
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O oito de março é uma data histórica e simbólica para as mulheres no mundo inteiro, que demonstram neste dia, em sua diversidade, suas lutas coletivas. Em 2020 teremos eleições municipais no Brasil, nas quais assistiremos a programas de governo (algumas vezes elaborados sem nenhum diálogo com a sociedade) e propostas de agendas urbanas para as cidades brasileiras.

Gostaríamos de chamar atenção para a importância deste momento e das contribuições que vêm sendo elaboradas dentro de um movimento nacional chamado BrCidades, onde o Núcleo Porto Alegre, em sua maioria formado por mulheres, vem discutindo e aprofundando análises sobre questões de gênero, LGBTQ+, raça e classe nas cidades. Nossa proposta é compreender a necessidade destes agentes e relacionar suas agendas com as políticas urbanas.

Atualmente vivenciamos um período complexo que afeta o país e o mundo. Parte considerável das mudanças que esta época nos impõe impacta fortemente na vida nas cidades, mas realizada sem a participação da sociedade.  Esse movimento de ruptura democrática, a partir da emergência de forças conservadoras, indica um cenário de grandes retrocessos para a agenda urbana do país, com aumento da segregação socioespacial, da violência associada às discriminações de gênero, raça, classe e sexualidade.

Essas discriminações produzem distintas vivências no habitar das cidades, afetando a vida de quem tem ou não acesso aos empregos, espaços, políticas e equipamentos públicos. As lutas por direitos lideradas por mulheres têm incorporado os temas urbanos e de planejamento em suas demandas, denunciando o fato de que historicamente as cidades têm sido pouco amigáveis para as mulheres.

Com a conjuntura atual de restrição de acesso aos serviços e espaços públicos e à infraestrutura urbana, necessitamos políticas públicas que garantam não apenas a qualidade de vida, mas a própria existência social e física desses grupos.

Já vemos o aumento da discriminação, violência e precarização dessas populações, com o número crescente de feminicídios, que subiram 7,3% em 2019 – em relação ao mesmo período no ano anterior -, mortes por homofobia, transfobia, o genocídio da população negra e indígena e os ataques aos povos de terreiro no Brasil. São também estas populações as principais vulneráveis no seu direito à terra, à moradia adequada, à mobilidade urbana com segurança e ao acesso ao mercado de trabalho formal e justo.

Considerando que o Brasil já é um país urbanizado, com mais de 84% da sua população vivendo nesta configuração e com o aumento do número de pessoas vivendo nas grandes e médias cidades, é urgente repensarmos como enfrentaremos essas questões. E mais: precisamos avançar na compreensão de como o planejamento urbano pode impedir a segregação dessas populações e de que forma podemos interseccionar estas lutas e garantir o direito à cidade para todas e todos. 

Entendemos ser possível intervir nos rumos dessa história a partir da construção de uma nova agenda urbana elaborada desde a perspectiva social que contemple as vivências raciais/étnicas, sexuais e de gênero. Necessitamos um olhar não só amigável com as mulheres, mas mais inclusivo às suas demandas.

Para isso, é importante que neste ano a disputa eleitoral contemple a diversidade nas cidades e escute as vozes plurais que vivem em nossas urbes para compreender coletivamente como se materializa a desigualdade de classe, raça e gênero no Brasil e na cidade de Porto Alegre.

Acreditamos que repensar o espaço urbano na interface de gênero, LGBTQ+, raça e classe deve ser um exercício coletivo com participação de movimentos sociais urbanos, dos movimentos de mulheres, da população negra e indígena, dos moradores em situação de rua e dos coletivos LGBTQ+, imigrantes, técnicos e acadêmicos.

A partir do projeto de extensão “Mulheres e Cidades”, e em discussões com a comunidade, vemos que a problemática maior, reside no direito de ir e vir. A mobilidade e a circulação estão no centro de muitos debates com os coletivos de mulheres. Como circular com segurança nos espaços públicos? Como andar sem sofrer assédio nos transportes públicos? Como denunciar o assédio e a violência contra a mulher e os grupos mais vulneráveis? Como efetivar o direito à moradia de maneira que ele seja real para as mulheres chefes de família?

Temos consciência que a vida humana, a vida destes sujeitos e o direito a (re)existir está cada vez mais ameaçado. Tanto pela ameaça aos seus corpos, quanto pela perda de direitos e o corte de recursos para as políticas sociais. As violências em nível simbólico e moral também afetam fortemente estes grupos, conduzindo à experiências distintas do usufruto do espaço da cidade. Estas determinam, em grande medida, quem pode ou não acessar determinados espaços.

Historicamente, a cidade é feita e refeita num movimento hegemônico do patriarcado que rejeita, criminaliza e marginaliza as formas de ser e de se manifestar relacionadas a gênero, raça/etnia e sexualidade. Precisamos buscar uma forma mais sensível e humana de pensar nossas cidades. Uma forma que considere, em seu conjunto, esses grupos que correspondem à maior parte da população brasileira.

O usufruto do espaço urbano – com qualidade/dignidade – é restrita a um número muito pequeno de pessoas. Essa situação gera um sentimento de não pertencimento a determinados espaços, processos e dinâmicas da cidade. A vivência das mulheres em situação de rua traz problemáticas fundamentais para (re)pensar as relações no espaço urbano – o escasso acesso aos recursos básicos de higiene e à maior exposição ao assédio e situações de violência sexual.

Por outro lado, os grupos ancestrais possuem dificuldade para permanecer no território. Suas lutas são pelo direito à moradia e reconhecimento de sua existência na cidade, tais como moradores de quilombos e de aldeias indígenas. Pensamos que seria fundamental desenharmos alternativas autônomas, na construção de redes de apoio e solidariedade local, mas também agir na direção de formulação de políticas públicas e na articulação com as instituições brasileiras.

Consideramos que o debate sobre o espaço urbano deve dirigir esforços na retomada da valorização do público, o qual se constrói como espaço de pertencimento e inclusão à diversidade das experiências sociais que existem nas cidades brasileiras. 

Seria importante neste 8 de março disputar a narrativa entre o público e o privado. Entendemos que este conflito é elemento central no debate sobre as cidades, o qual tem se manifestado num ataque generalizado a tudo o que é público, prevalecendo a narrativa que privilegia as ações individuais e privadas no espaço urbano.

Outro elemento também central no pensar sobre as nossas ações é a necessidade de avançar no trabalho de articulação entre centro e periferia, construindo redes de colaboração e proteção. Se queremos construir cidades mais democráticas, precisamos desenvolver ações mais horizontais e coordenadas, consolidando redes com as comunidades que vivem nas vilas e favelas das cidades brasileiras.

Nesta direção, em grande medida, a violência contra as mulheres não aparece como prioridade na pauta comunitária. As lutas se vinculam centralmente nas necessidades mais básicas do dia a dia – moradia, alimentação, saneamento etc. Por isso, consideramos importante falar sobre a interseccionalidade de opressões e como ela se reflete nas vivências, acentuando as violências e exclusões, sobre o habitar e viver nas cidades.

Este texto se propõe não só a contribuir para os debates neste dia tão importante para as mulheres do mundo, como pretende ser o começo de um longo caminho de reflexão para a construção de uma agenda urbana nacional que seja, de fato, inclusiva e contemple estes agentes que muitas vezes vêm sendo excluídos do planejamento e da forma de pensar as cidades no Brasil.

É necessário refletir sobre como incorporar as propostas e como pensar as cidades a partir dos múltiplos olhares das mulheres, formas seguras de ser/estar nos espaços públicos, mobilidade, moradia adequada, políticas urbanas inclusivas para as mulheres, para as mulheres em situação de rua e para mulheres com deficiência.

Necessitamos ainda avançar em políticas para as mulheres negras e indígenas que vivem/ou não em quilombos e aldeias urbanas, assim como para as LGBTQ+, além de combater toda e qualquer forma de violência de gênero.

Contudo, para que as mulheres tenham direito à vida urbana é preciso um elemento fundamental: é necessário garantir que estejam vivas. Para que isto aconteça, é imprescindível políticas públicas voltadas para elas. É por isso que lutamos.

Vanessa Marx é professora de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e membro do BR Cidades. 

Gabriela Luiz Scapini é doutoranda em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e membro do BR Cidades.

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