Sociedade

Razan, uma mulher e os horrores da Síria

Mãe de três filhos, cozinheira refugiada lembra os horrores da guerra e as dificuldades da jornada até o Brasil

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Em 2014, a síria Razan Suliman viu seus dois pequenos filhos, Nwaf e Thanaa, serem arrancados de seus braços.  

Seu ex-marido, pai das crianças, trabalhava para o exército de Bashar al-Assad e levou para longe da mãe uma menina e um menino, hoje com oito e seis anos, respectivamente.

Era o começo de uma série de acontecimentos trágicos, que levaram a sunita, hoje com 27 anos, a abandonar seu país e desembarcar, como refugiada, em terras brasileiras.

“Ele fugiu com eles, falou que ia passear, não avisou nada, roubou meus filhos e foi embora. Eu fiquei muito triste, a gente pensou que ele tinha morrido com as crianças. Hoje, ele está na Alemanha com eles. Minha mãe fala com eles, eu não posso, porque somos separados. Ele não deixa eu falar com os meus filhos”, revela com um forte olhar bem marcado pela maquiagem. Seu frágil porte físico e a roupa colorida se contrastam com as adversidades trazidas pela vida.

Sua jornada iniciou-se em abril de 2014, em meio ao grave conflito que persiste por seis anos e matou mais de 320 mil pessoas, segundo o último dado divulgado pelo Observatório Sírio dos Direitos Humanos.

Além da intervenção de forças estrangeiras em território sírio, grupos radicais religiosos como o Estado Islâmico promovem uma verdadeira guerra dentro da guerra. Para isso, fazem uso de táticas brutais. “Quando o Estado Islâmico entrou na guerra, todo mundo ficou com medo, ninguém saia na rua. O ISIS pega as mulheres, estupra e mata. A mulher passa por 40, 50 homens por dia. Eles não são islâmicos, não sei o que é isso que eles seguem”, diz Razan com indignação.

Lembranças de Aleppo

O primeiro casamento de Razan aconteceu quando ela tinha 18 anos. Aos 19, já tinha nos braços a primeira filha e, três anos depois, nasceu o segundo. Ela conta que a vida com o ex-marido era, até então, confortável.

 

“Se faltasse alguma coisa pedíamos para a família ou para amigos vizinhos. As relações de vizinhança são muito fortes, um bairro é uma família”, lembra. Razan descreve a vida antes da guerra no centro de uma Aleppo como tranquila, segura e barata, com a possibilidade de seus filhos estudarem em escolas públicas.

Em 2012, Razan pediu a separação, mas seu ex-marido voltou a procurá-la. A situação escalou para a agressão, ocorrida em um episódio de invasão de sua residência por membros do próprio exército. “Ele deu um soco no meu nariz”, conta ela com um ar de normalidade, ressaltando que o caso “foi uma gota frente ao ocorrido com outras mulheres”.

Ao mesmo tempo, a situação política e social no país era agravada com o acirramento do conflito. Ela conta que assistiu às cenas de manifestações, mas sem nenhuma participação efetiva. “Não participei, não é meu problema, mulher não pode participar com eles em nada, fica em casa, não pode nada”, explica deparando-se agora com uma surpreendente, para seus padrões, participação política das mulheres no Brasil. Para ela, é uma “coisa boa”, embora tenha sido criada a vida toda para “nem pensar nisso”.

Recém-separada, a jovem passou a dar aulas particulares de inglês na casa dos pais, ainda em Aleppo. Com a guerra, porém, o país entrou em uma grave crise econômica, deixando milhões de pessoas desempregadas. O PIB da Síria despencou 57% em termos reais desde 2010, de acordo com um relatório recente do Fundo Monetário Internacional (FMI).  

Passar fome tornou-se realidade para a população, especialmente em sua cidade natal, um verdadeiro microcosmo da guerra.  “Onde tem comida é muito cara, se eu vou comprar para os meus filhos preciso de muito dinheiro. Quando começou a guerra, minha família perdeu tudo. Não tinha nada, era muito difícil para conseguir comida e água, era tipo um sonho”, relatou com olhar abatido.

A refugiada chegou a mudar de casa mais de dez vezes e viu mais de 40 amigos e parentes serem mortos. A infraestrutura da cidade também se deteriorou com os ataques aéreos, iniciados em 2013 por Assad. “Caíam bombas a cada minuto, três primos meus morreram em um bombardeio em uma das casas que eu morava”, diz a moça assombrada constantemente pela morte.

Assim, o cotidiano virou um pesadelo. “Fui comprar comida e caiu uma bomba”, lembra. Certa vez, ao sair do esconderijo de uma loja, Razan deparou-se com uma ensanguentada cena, mas ainda assim, salvou a vida de um menino de 12 anos, cuja perna havia sido arrancada pela explosão. “Peguei ele e coloquei em um táxi e fui com ele para um hospital, lá eu vi muitas pessoas mortas e feridas”. Se a criança sobreviveu ou não, ela não sabe.

A barbárie nas ruas de Aleppo não se limitava aos bombardeios: invasões de domicílios da cidade tomada pelos rebeldes ocorriam com frequência enquanto Razan estava lá.

“Eles entram em casa, tiram as coisas e mandam a gente embora. Vamos para outro lugar e é a mesma coisa. Ninguém tem medo de Deus lá, se tem mulher ou criança, para eles não tem problema. Todas as pessoas lá machucam as outras”, lembra, sem esconder a revolta.

Caminhos tortuosos

As invasões e o sequestro de seus filhos, Nwaf e Thanaa, foram a gota d’água para a síria, levando ao fim a esperança de um dia viver em paz. Ao lado de Mohamed, seu novo companheiro, Razan resolveu abandonar a destroçada terra e seguir pela estrada de Aleppo para Damasco.

“Dormimos na rua, comemos na rua, tudo na rua. Fomos andando a pé, até saída de Aleppo”, conta Razan, para quem os 310 quilômetros que separam Aleppo da capital Damasco, seu primeiro destino, pareciam infinitos. “Havia uma pessoa morta no carro dele, atrás. Na frente, o motorista e o irmão dele. Eu comecei a chorar. Foram de três a quatro horas de viagem”, conta lembrando do tormento de se deparar mais uma vez com a morte.

Não pretendiam, porém, ficar na capital síria. Com dinheiro arrecadado com doações de amigos e familiares, o objetivo era se afastar da região. “Ficamos na rua um dia, depois fomos para outra cidade, Hama. Mas não aguentamos, porque tinha o mesmo problema de Aleppo: as bombas caiam de minuto a minuto”

Seguiu então para o Líbano, onde teve de pagar a fiscalização e a carona. Nas quase cinco horas de viagem, o sentimento não era de liberdade, mas de tensão e angústia. Em Beirute, abrigou-se com o marido em um quarto durante o Ramadã, mas as privações continuaram ao longo dos três meses em que permaneceu no país.

Com a obtenção do visto, o casal comprou passagens para a França, mas ambos foram barrados no aeroporto, ainda em solo libanês. De volta à estaca zero e com uma frustração e desesperança crescentes, Razan cogitou voltar à Aleppo. Seu marido, porém, insistiu em um novo destino: o Brasil.

Sem falar português e com poucas informações sobre o país, Razan lembra que o impacto e o desconforto ao desembarcar no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, foram imediatos. “Estranhei tudo, a roupa, o jeito das pessoas”, conta agora já acostumada com a brasilidade.

Sem dinheiro ou hospedagem, o casal foi acolhido por um desconhecido no próprio aeroporto. “Ele nos levou para a casa dele, onde ficamos dez dias, depois ele nos alugou uma outra casa por um ano”.

Em meio à crise econômica brasileira, os obstáculos continuaram, sobretudo na busca por um emprego. Mohamed trabalhou como guarda de trânsito na Prefeitura de São Paulo por três meses. Depois, conseguiu um trabalho em uma lanchonete. Em 2015, nasceu Adam, seu terceiro filho.

A Mesquita do Brasil auxilia a família com moradia, cesta básica e também com apoio religioso. Vivendo no bairro do Cambuci, Razan notou que a comida árabe fazia sucesso na capital paulistana. Ela passou, então, a cozinhar pratos árabes e vendê-los para vizinhos. Logo, o negócio cresceu e, hoje, a família dedica-se a ele.

Apesar da melhora, vivem com medo de serem despejados do apartamento onde vivem. A ajuda financeira dada pela mesquita limita-se a um período de um ano. “Estou pedindo ajuda do brasileiro para ele me dar doação das coisas, para eu montar a minha cozinha”, pede com confiança no povo que a acolheu.

O futuro é uma incógnita, mas a saudade dos pais e dos filhos pequenos é a força que move Razan, que, um dia, sonha em reunir novamente a família destroçada pela guerra.

 

 

 

 

 

 

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