Sociedade
Minha terra tem palmeiras
Tenho evitado ferrenhamente falar de política. Não, meu caro, não que me falte opiniões a respeito, mas prefiro ser visto como alguém interessado em literatura. Por Menalton Braff


Tenho evitado ferrenhamente falar de política. Não, meu caro, não que me falte opiniões a respeito, mas essas são da minha vida privada, e o que escrevo torno público e prefiro ser visto como alguém interessado em literatura, apenas. Claro, também não ignoro que todo ato humano em relação a seus semelhantes, como escrever essas poucas e mal traçadas linhas, por exemplo, é ato político, mas aqui tenho de acrescentar que não desfraldo bandeira partidária. E tenho minhas razões, não fazendo questão de torná-las conhecidas. Em síntese, não faço proselitismo político partidário.
Enfim, num momento de fervura política em nosso país, eis-me escrevendo sobre impressões não sei se menos importantes, mas com toda certeza muito menos atuais, pois que a vida não é tecida apenas por momentos candentes, senão também pelos intervalos de menor temperatura.
Isso tudo eu digo porque há poucos dias estive em São Paulo, e toda vez que lá vou lembra-me Gonçalves Dias. Alguém mais afeito à arte literária há de me ameaçar com a maldição dos manitôs de que fala o poeta, afirmando que ele não tem relação nenhuma com a maior cidade do Brasil. E meu leitor amigo terá e não terá razão. Gonçalves Dias, um dos maiores poetas de nosso país, é maranhense e, sei lá, me parece que nunca passou pela capital paulista. Se passou, isso não fez marcas em sua vida. Mas ocorre que meu leitor terá razão por causa dos sabiás.
As palmeiras não são árvores muito notáveis, em São Paulo. E sofri um repelão da consciência ao chamar palmeira de árvore. Mas que outro nome lhe daria? Portanto, árvore, sim. Mas em lugar nenhum o sabiá canta em palmeiras, exceto na liberdade que o poeta tem de recriar a realidade. E isso desde a Antiguidade, quando Aristóteles o afirmou. E quem sou eu para duvidar do estagirita.
Pois muito bem, mesmo sem muitas palmeiras, os sabiás pulam e pululam nas árvores de São Paulo. Há bairros em que nossos cantores competem com os ruídos normais de uma cidade.
Não me lembro se já contei que, parado na frente de um hotel, em São Paulo, numa região de edifícios muito altos, o canto do sabiá fazia eco dos dois lados da rua, como se estivesse cantando com o bico grudado num microfone. Mas ali onde estávamos, o sabiá e eu, nem árvores havia, a não ser alguns arbustos na frente dos edifícios.
Intrigado com o concerto vespertino, mas também encantado, resolvi descobrir de onde vinha aquele canto tão doce, tão de clarineta, por causa do veludo na voz. E descobri: o sabiá estava empoleirado num fio elétrico que atravessava de um lado a outro da rua. Lá, sozinho, cabeça erguida, bico aberto, ele fazia sua seresta.
Esse foi somente um caso. Um caso que me deixou em estado de puro encantamento, claro. Mas a verdade é que não vou a São Paulo sem que ouça muitas vezes a melodia do sabiá. Para quem gosta das antonomásias, como sei que existem, sugiro o epônimo “Cidade dos sabiás”. Quanto às palmeiras, bem, depois plantamos algumas.
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