Sociedade

Menos guerras, novos conflitos: desafios para organizações humanitárias

Conflitos armados se tornaram menos frequentes nos últimos anos. Mas a redução no número de guerras não tornou o mundo seguro

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Ana Carolina Pekny

Ao contrário do que se imagina, conflitos armados se tornaram menos frequentes nos últimos anos. No entanto, a redução no número de guerras não tornou o mundo seguro. Segundo a Declaração de Genebra sobre Violência Armada e Desenvolvimento, mais de 500 mil pessoas perdem suas vidas todos os anos vítimas da violência armada, e pouco mais de 1% dessas mortes ocorrem em zonas de guerra.

O conceito de conflito armado é controverso. Existem diferentes definições baseadas em critérios, como o número de mortes e o grau de organização dos grupos envolvidos.  De fato, faz pouco sentido dizer que o México não se encontra em meio a um conflito armado quando se sabe que mais de 50 mil pessoas foram assassinadas entre 2006 e 2011 naquele país. Essa realidade impõe desafios não apenas aos governos nacionais, que se veem incapazes de responder de maneira eficaz à violência endêmica, mas também a organizações como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) e os Médicos Sem Fronteiras, que começam a repensar seus mandatos.

As consequências humanitárias da violência urbana são similares àquelas associadas a guerras. Inúmeras mortes, desaparecimentos, deslocamentos forçados, traumas psicológicos e impactos negativos sobre serviços básicos como saúde e educação são algumas delas. No Rio de Janeiro, confrontos envolvendo facções criminosas e a polícia eram e ainda são seguidos por toques de recolher que causam transtornos às comunidades afetadas. A população deixa de procurar esses serviços quando sair de casa se torna uma tarefa muito arriscada.

O CICV tem como objetivo garantir a assistência a vítimas de guerras e violência armada. Apesar disso, sua atuação em situações que não configuram conflitos armados é delicada e cercada de dilemas. Casos como os do México e Rio de Janeiro não são cobertos pelas Convenções de Genebra, série de tratados que definem direitos e deveres em tempos de guerra e compõem as bases do Direito Internacional Humanitário.

As Convenções norteiam o trabalho do Comitê, e a questão sobre qual deve ser o marco legal alternativo para as operações de organizações humanitárias não é trivial. Ainda assim, muitos defendem a tese de que a natureza desses “conflitos” e suas consequências justificam a atuação nesses cenários.

Cresce dentro das organizações humanitárias a certeza de que seu envolvimento  em contextos de violência urbana já não se trata de uma questão de “se”, mas “como”. Cresce também a convicção de que o futuro de suas operações está em cidades afetadas pela criminalidade, ideia que provoca reações por parte dos que defendem que a Cruz Vermelha atue apenas em casos de violência política. Para a vice-diretora de operações do CICV, Angela Gussing, as motivações dos grupos armados nunca foram e nem devem ser critério de escolha para a atuação do Comitê. Porém, muitos se questionam sobre como garantir que grupos criminosos respeitem o trabalho dessas organizações. Além disso, cidades ainda são terrenos pouco conhecidos por esses atores, que apontam a dificuldade em identificar as vítimas de violência urbana como um de seus maiores desafios.

Em 2008, o CICV lançou um projeto piloto no Rio de Janeiro em parceria com a Cruz Vermelha Brasileira e associações locais. Optou-se inicialmente por oferecer cursos de primeiros socorros de modo a conquistar a confiança das comunidades de localidades como os Complexos do Alemão e da Maré. Dentre as atividades desenvolvidas estão a assistência a adolescentes grávidas; a promoção de saúde mental; e o programa “Criando Espaços Humanitários”, que incentiva professores e alunos a discutir temas como direitos humanos e prevenção da violência. Além disso, a Cruz Vermelha visita delegacias para monitorar condições de detenção, em um bom exemplo de como a experiência adquirida em situações de guerra pode ser útil em outros contextos. O diálogo com a polícia e facções também faz parte das atividades do projeto, que ainda está em execução.

Os Médicos Sem Fronteiras chegaram ao Brasil em 1991 e executam diversos projetos no país desde então, nem sempre relacionados à temática da violência, assim como a Cruz Vermelha Brasileira. Dentre os projetos voltados às vítimas da violência urbana, destacam-se as iniciativas de prestação de assistência médica e psicossocial em localidades como Vigário Geral (1995-1998) e Complexo do Alemão (2007-2009). No Alemão, equipes da organização ofereciam atendimento de emergência, cuidados de saúde mental e transferência em ambulância para hospitais da região.

Não há dúvidas sobre a gravidade dos impactos da violência urbana, especialmente na América Latina e Caribe. Se é necessário buscar um marco legal que ampare a atuação dessas organizações, também é fundamental que se compreendam as particularidades de uma manifestação da violência armada a que elas não estão habituadas. Cabe a elas analisar em que podem ajudar e como podem fazer a diferença, considerando suas competências específicas e priorizando parcerias com atores locais – que conhecem como ninguém os danos que se pretende mitigar.

Ana Carolina Pekny é mestre pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais e do Desenvolvimento, em Genebra, Suíça.

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