Sociedade

Massacre de Altamira é o maior desde o Carandiru (e Bolsonaro faz galhofa)

Para o Le Monde, ‘a carnificina expõe o inferno do sistema carcerário no Brasil, onde prisões superlotadas abrigam situações explosivas’

Na porta do IML, familiares das vítimas não suportavam o mau cheiro
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A rebelião no Centro de Recuperação Regional de Altamira, no Pará, durou menos de cinco horas. Foi o suficiente para uma briga entre facções rivais e um incêndio criminoso deixarem o tenebroso saldo de 57 mortes, 41 por asfixia e 16 por decapitação. O confronto começou na manhã da segunda-feira 29, logo após as celas serem destrancadas para o café. Em disputa com o Comando Vermelho pelo controle de rotas do tráfico de drogas na Região Amazônica, o Comando Classe A atacou o pavilhão dos oponentes.

Trata-se do maior morticínio em um mesmo presídio desde o massacre do Carandiru, em 1992, quando 111 detentos foram assassinados durante a violenta incursão da PM de São Paulo para retomar o controle do complexo. Há dois anos, Manaus também protagonizou motins que resultaram em 67 mortes em uma semana, mas nem todos cumpriam pena na mesma unidade prisional.

Na verdade, o número de vítimas do massacre paraense é ainda maior que o divulgado inicialmente. A contagem chegou a 58 depois que os agentes encontraram um corpo debaixo dos escombros. Na noite de terça-feira 30, morreram outros 4 detentos que sobreviveram ao massacre e estavam sendo transferidos para a cidade de Marabá, distante 500 quilômetros de Altamira. Todos estavam algemados e viajavam divididos entre quatro celas. Segundo o governo paraense, chefiado por Hélder Barbalho, do MDB, eles foram mortos por sufocamento. Os 26 presos remanescentes acabaram no isolamento.

As cenas de barbárie causaram repulsa pelo mundo afora. Para o diário francês Le Monde, “a carnificina expõe o inferno do sistema carcerário no Brasil, onde prisões superlotadas abrigam situações explosivas”. O New York Times destacou que os guardas, em número reduzido, têm “dificuldade de deter o poder contra uma população de detentos capaz de administrar atividades criminosas atrás das grades”. Para o Washignton Post, a violência em Altamira “ilustra a crescente insegurança nas complexas e superlotadas prisões brasileiras”. O jornal americano destaca ainda o papel de Jair Bolsonaro, “eleito no ano passado com promessas de acabar com a violência e que descreveu planos de ‘encher as celas de criminosos’”.

A despeito da comoção mundial, o presidente da República preferiu zombar da tragédia. No dia seguinte à rebelião, repórteres correram atrás de Bolsonaro pedindo, de forma insistente, uma declaração sobre o massacre. “Pergunta para as vítimas dos que morreram lá”, rebateu, pouco antes de entrar no carro oficial e deixar o Palácio do Planalto. Bolsonaro fez questão de publicar o vídeo deste momento no Twitter, acompanhado de uma mensagem: “Fora dos presídios também há uma guerra onde praticamente só um dos lados está armado”. Em maio, quando rebeliões em quatro presídios de Manaus deixaram 55 mortos, ele repassou ao porta-voz Otávio Rêgo Barros a tarefa de se declarar “consternado pelo processo escabroso que ocorreu naquele sistema penitenciário”.

“Pergunta para as vítimas dos que morreram lá”, reagiu Bolsonaro

Como de hábito, sobram indícios de que a tragédia paraense poderia ter sido evitada. A unidade de Altamira foi construída às pressas, em um acordo de contrapartida com a Norte Energia, concessionária responsável pela Hidrelétrica de Belo Monte. Parte da estrutura era feita com sobras de contêineres. Ao fiscalizar o presídio, o Conselho Nacional de Justiça observou que ele estava em “péssimas” condições. O último relatório do órgão, divulgado em julho, falava em segurança precária, reduzido número de agentes penitenciários e superlotação – eram 343 presos, quase mais que o dobro da capacidade projetada. Outra cadeia deveria ter sido erguida para suprir a demanda da região, mas as obras estão atrasadas há três anos. Segundo a Norte Energia, pela “complexidade dos projetos e programas característicos da Região Amazônica”.

Além disso, o secretário estadual de Inteligência e Análises Criminais, delegado Carlos André Costa, reconheceu, em entrevista à Folha de S.Paulo, que a cúpula de segurança previa um possível confronto entre as facções criminosas, uma vez que o Comando Vermelho estava avançando sobre áreas do Sul do Pará, controladas pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), que recentemente aliou-se ao Comando Classe A. O estado, convém lembrar, registrou 54,7 assassinatos por 100 mil habitantes em 2017, a sexta maior taxa de homicídios do País, segundo o último Atlas da Violência, divulgado em junho passado.

Na transferência, quatro sobreviventes foram assassinados

Em Altamira, o cenário é ainda mais aterrador. Trata-se do município com mais de 100 mil habitantes mais violento do Brasil. A taxa de homicídios é quase o dobro da verificada no estado (107, segundo o Ipea), fruto do crescimento desordenado da cidade, que resultou da construção da Usina de Belo Monte.

A reação de Bolsonaro ao massacre não é menos escabrosa do que a desconfiança manifestada após o assassinato de um líder indígena no oeste do Amapá. De acordo com relatos dos Wajãpi colhidos pela Funai, um grupo de garimpeiros portando armas de grosso calibre há dias faz incursões pela terra indígena com o objetivo de intimidá-los. Na segunda-feira 29, o cacique Emyra Wajãpi foi assassinado, mas ninguém testemunhou o crime. De forma irresponsável, antes mesmo de a Polícia Federal concluir as investigações sobre o homicídio, o presidente disse não haver “nenhum indício forte que esse índio foi assassinado lá”.

Os Wajãpi denunciam ataques de garimpeiros em suas terras

A invasão da reserva, rica em ouro, atrapalha os planos do governo federal de liberar a mineração em terras indígenas, antiga promessa de campanha. “É intenção minha regulamentar garimpo, legalizar. Inclusive para índio, que tem que ter o direito de explorar o garimpo na sua propriedade”, declarou Bolsonaro recentemente. “Lógico, ONGs de outros países não querem, querem que o índio continue preso num zoológico animal, como se fosse um ser humano pré-histórico.”

A mudança na legislação depende de aval do Congresso. Como a mineração causa graves impactos ambientais, como a degradação do solo e a contaminação de rios por metais pesados, é expressiva a oposição à iniciativa, sobretudo em áreas protegidas da Amazônia. No domingo 28, o New York Times revelou, em matéria de capa, que as multas aplicadas pelo Ibama no primeiro semestre tiveram uma queda de cerca de 20%. Intitulada “Destruição da Floresta Amazônica Acelera”, a reportagem ressalta que a devastação do bioma vem aumentando rapidamente desde que Bolsonaro tomou posse e seu governo reduziu seus esforços de combate à extração ilegal de madeira, à pecuária e à mineração. The Economist, por sua vez, diz que o mundo “deveria deixar claro ao senhor Bolsonaro que não tolerará seu vandalismo”, e sugere um boicote internacional a produtos agropecuários brasileiros.

Nos EUA e na Europa, a devastação da Amazônia recebe uma atenção que os jornais brasileiros não costumam dispensar ao tema

O desmatamento na Amazônia atingiu 920 quilômetros em junho, alta de 88% em relação ao mesmo período do ano anterior, atesta o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Em vez de usar o alerta para deter os desmatadores, Bolsonaro culpa o mensageiro. Acusou o diretor do órgão, Ricardo Galvão, de estar “a serviço de alguma ONG” e divulgar dados falsos. “Com toda a devastação de que vocês nos acusam de estar fazendo e ter feito no passado, a Amazônia já teria se extinguido.”

Balela. O Inpe tem o melhor sistema de monitoramento de florestas tropicais do mundo, atesta Carlos Nobre, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP e um dos mais renomados climatologistas do mundo. Doutor em meteorologia pelo Massachusetts Institute of Technology e um dos autores dos relatórios sobre o aquecimento global do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática, iniciativa agraciada com o Nobel da Paz de 2007, Nobre alerta para o risco de savanização da Amazônia, e o ponto de ruptura está próximo. “Precisamos avançar para uma política de desmatamento zero a curto prazo. O ideal seria atingir esse objetivo até 2030”.

Se depender da vontade de um certo capitão, é melhor esperar pelo pior.

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