Sociedade
Maioria de quem está na ‘Cracolândia’ foi internado, dorme na rua e realiza atividades produtivas regularmente
Cenário é retratado em um estudo do Núcleo de Estudos da Burocracia da Fundação Getulio Vargas (NEB/FGV), do Centro de Estudos da Metrópole da USP e do Grupo de Estudos (in)disciplinares do corpo e do território (Cóccix)


Umas das maneiras de se verificar a eficácia da gestão pública se dá por meio de conversas com a população que tem de ser foco das políticas públicas. E, no que diz respeito à Cracolândia, na região central da capital paulista, esse diálogo revela ineficácia das políticas públicas atuais, violência policial e expectativas frustradas dessas pessoas em relação ao poder público.
É isso que mostra o relatório “A ‘Cracolândia’ pelos usuários: como as pessoas que vivem nas ruas do território percebem as políticas públicas”, estudo produzido pelo Núcleo de Estudos da Burocracia da Fundação Getulio Vargas (NEB/FGV), pelo Centro de Estudos da Metrópole da USP e pelo Grupo de Estudos (in)disciplinares do corpo e do território (Cóccix).
Os pesquisadores conversaram com 90 indivíduos entre julho e agosto de 2022. Mais de 80% de quem topou dar entrevista são homens negros entre 30 e 49 anos. A amostra não é, portanto, representativa para toda a população da Cracolândia, mas joga uma luz sobre a realidade vivida por usuários de drogas e pessoas em situação de rua na região.
Mais de 90% dos indivíduos que falaram com os pesquisadores relataram fazer uso de crack (os demais relataram uso regular de bebidas alcoólicas). A maioria (69%) dorme nas ruas e quase 40% disseram que estão na região por vontade própria – consideram a Cracolândia sua casa ou porque se sentem bem ali.
Apesar das condições adversas, metade dos participantes mantém contato com a família. A pesquisa também identifica um esforço dos indivíduos para gerar renda e buscar autonomia: mais de dois terços dos entrevistados realizam atividades produtivas regularmente, como reciclagem e venda de objetos.
Internações recorrentes
Sete em cada 10 entrevistados já foram internados pelo menos uma vez – há casos de usuários de crack que chegaram a se internar mais de 30 vezes. A alta taxa de reinternação, no entanto, denota falhas no sistema de tratamento atual. Muitos veem a internação como um local temporário para descanso e recuperação física, não como uma solução efetiva para o uso problemático de drogas.
“Os dados mostram uma relevante aderência das pessoas às internações, contrariando um discurso geral que diz que as pessoas não querem se tratar”, diz Amanda Gabriela Amparo, do Cóccix, uma das autoras do trabalho.
As principais razões para o abandono das internações incluem o fim do prazo sem suporte pós-tratamento, abstinência forçada e más condições nas instituições, que muitas vezes se assemelham a prisões. Essa realidade evidencia a necessidade de repensar as abordagens de tratamento, considerando as perspectivas e necessidades dos próprios usuários.
“O aumento da presença policial e os esforços para trazer a sede do governo estadual ao centro podem agravar ainda mais a situação, afastando qualquer perspectiva de solução”, diz Giordano Magri, pesquisador da FGV que coordenou o estudo. Para ele, o futuro dessas pessoas é incerto.
A violência policial surge como um fator agravante na vida dos moradores da Cracolândia. A Inspetoria de Operações Especiais (IOPE) da Guarda Civil Metropolitana é destacada como a força mais agressiva nos depoimentos da pesquisa. “A gente não pode dormir e nem comer. Somos parados pela operação, aí temos que correr”, relata uma das entrevistadas, destacando o clima de constante medo e insegurança.
Além disso, o fechamento de serviços de cuidado e o aumento da presença policial têm intensificado as tensões na região.
A política de dispersão adotada a partir de 2022 resultou no espalhamento das cenas de uso de drogas pela cidade, amplificando os problemas e gerando impactos negativos para os usuários e para a comunidade local. O tema tem aparecido também no debate eleitoral em São Paulo.
As agressões causam traumas físicos e psicológicos, além de alimentar o estigma social. Isso contribui para a marginalização e dificulta ainda mais o acesso a serviços de saúde e assistência social. “Eles acham que com isso estão aliviando alguma coisa? Não, estão prejudicando segundos e terceiros”, afirma um dos entrevistados.
Segundo Magri, da FGV, o futuro dessas pessoas é incerto. “Embora os dados apontem para a necessidade de expandir os serviços, diminuir a violência e criar alternativas para reduzir a vulnerabilidade desse público, as políticas atuais seguem na direção oposta”.
Agressões físicas, morais e sociais culminam nas cenas generalizadas de violência como os arrastões e tantas outras que vemos ser publicadas nas mídias. “E, na contramão de um modelo de intervenção positiva, os tratamentos de saúde e de assistência social não têm conseguido impactar a realidade das pessoas”, diz Amparo, da USP.
A inadequação dos serviços ofertados e a violência constante resultam em uma profunda falta de expectativa em relação ao poder público. Muitos entrevistados expressam desilusão e desconfiança, sentindo-se invisíveis e excluídos das decisões que afetam diretamente suas vidas.
Para os autores do trabalho, a transformação da realidade na Cracolândia não será alcançada por meio de ações isoladas ou repressivas, mas por meio de uma abordagem que coloque o ser humano no centro das políticas. Apesar do cenário desolador, os entrevistados apresentam soluções claras para os problemas enfrentados.
A necessidade de políticas integradas é enfatizada, com destaque para oportunidades de trabalho, acesso à moradia digna e cuidados de saúde efetivos. “Um bom tratamento seria ter uma cooperativa para todos terem uma ocupação de mente”, sugere um entrevistado, ressaltando a importância de atividades que promovam inclusão social e autonomia.
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