Sociedade

Luto materno: Política Nacional de Humanização esbarra em despreparo dos médicos e racismo estrutural

O texto não determina nenhuma ação ou diretriz voltada especificamente para o atendimento de mulheres negras e indígenas, desconsiderando as desigualdades que recaem sobre elas

Luto materno: Política Nacional de Humanização esbarra em despreparo dos médicos e racismo estrutural
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Euclidia Maria tem 62 anos e recorda com dor os momentos que viveu na maternidade após perder o primeiro filho, há 36. Ela estava com nove meses quando deu entrada em um hospital no Rio de Janeiro e, tendo vivido uma gravidez saudável até ali, se assustou quando o médico perguntou se ela tinha caído ou sofrido algum tipo de estresse. O quadro não era bom e, depois de três dias exaustivos de trabalho de parto, seu filho nasceu morto. 

“Voltei para a enfermaria onde havia mulheres com seus filhos, mulheres saindo para o pré-parto. Eu não sabia o que fazer. Fiquei em choque. Guardei meu choro, porque dá uma sensação de vergonha, de impotência. Eu ficava olhando para a janela, sem conseguir conversar com ninguém. Eu ia falar o quê? Conversar sobre o quê? Só me restava olhar para o teto, cobrir a cabeça e chorar em silêncio. Guardei isso por muito tempo”, conta. 

Três anos depois, após perder uma segunda gestação por aborto espontâneo, Euclidia deu à luz um filho vivo. O bebê precisou ficar internado no CTI (Centro de Terapia Intensiva) e, enquanto isso, ela dividiu o quarto com outra gestante. Quase como uma reprise do seu pesadelo, ela assistiu à mulher sofrer um aborto espontâneo e expelir o feto ali mesmo. 

“Foi quando liberaram meu filho do CTI. Eu observei essa jovem e falei: olha, eu não quero que meu filho fique comigo no quarto, porque aquela menina não está bem. Eu tive uma preocupação com meu filho, mas, no fundo, também estava preocupada com ela. Uma criança chorando, uma mãe amamentando, e ela lá, sofrendo o luto. Então preferi que meu filho ficasse no CTI”, afirma. 

Apesar da história de Euclidia já ter ocorrido há mais de 30 anos, nada mudou na realidade das mães enlutadas. Este ano, Yohanna Nascimento, de 37, viveu o que ela descreve como os momentos “mais dolorosos e traumáticos” da sua vida. Ela estava com 12 semanas de gestação e foi a uma consulta de pré-natal na UBS de Taguatinga Norte, no Distrito Federal. Chegando lá, relatou à médica que estava com cólicas e dores de cabeça, recebeu a recomendação de tomar um analgésico e voltou para casa. Três dias depois, uma ultrassonografia revelou que ela havia sofrido um aborto retido, quando o feto ou embrião não é expelido pelo útero. 

Encaminhada para o hospital onde faria o procedimento de AMIU (Aspiração Manual Intrauterina), Yohanna foi colocada em uma sala com outras mulheres grávidas que esperavam para realizar o ecocardiograma fetal, exame que avalia o coração do bebê ainda no útero. “Foi uma tortura psicológica. Pedimos para a médica me trocar de lugar, e ela disse que não podia fazer nada”, conta. 

Depois de medicada, ela sentiu contrações por mais de três horas até sua bolsa estourar. Sem nenhum tipo de assistência, Yohanna ainda teve de caminhar sozinha enquanto sangrava até a sala onde terminaria o processo. 

“Depois disso, só lembro que acordei numa sala com outra mãe com o seu bebê recém-nascido. Uma enfermeira pediu para colocarem uma divisa para me preservar, mas uma outra falou que não poderia fazer nada e que eu ia ter que lidar com isso. Meu esposo chegou a pedir para a enfermeira-chefe, e ela também disse que não poderia fazer nada”, lembra. 

Questão de saúde pública

Desde que há notícias sobre a humanidade, mulheres engravidam e, à revelia de seus desejos, perdem seus filhos durante a gravidez ou no momento do nascimento. Ainda assim, somente no dia 26 de maio deste ano foi sancionada a lei que cria a Política Nacional de Humanização do Luto Materno e Parental, que passará a tratar do acolhimento a famílias que enfrentam a perda de um filho durante ou até 27 dias depois da gestação – considerado o período neonatal.

A nova diretriz será incorporada ao SUS (Sistema Único de Saúde) e garante que as mães enlutadas sejam acomodadas em alas separadas na maternidade. Outro ponto tocado pela lei, e ao qual Euclidia Maria não teve acesso, é o direito sobre a escolha da realização ou não de rituais fúnebres e a oportunidade de a família participar da celebração de acordo com suas crenças e decisões.  

“Não me perguntaram se eu gostaria de ir ao sepultamento e não me mostraram meu filho. Quando o tiraram, eu é que pedi para vê-lo, e eles ainda perguntaram por quê, com muita frieza. Me mostraram de longe, o levantaram um pouquinho, viraram, e eu o vi. Depois, saíram com ele. Não me despedi do meu filho, e isso a gente carrega a vida inteira. Percebe o quanto isso nos mata? Não tem como recuperar. É um pesadelo”, desabafa. 

A lei também assegura aos pais o direito de atribuir nome ao natimorto e, se possível, o registro de sua impressão plantar e digital. Além disso, garante às mulheres que tiveram perdas gestacionais o direito e o acesso aos exames e avaliações necessários para investigação do motivo do óbito, à assistência psicológica e ao acompanhamento específico em uma próxima gestação. 

Antes da Política Nacional de Humanização do Luto, a Lei 11.303, sancionada em 2024, em Goiânia, foi a primeira no Brasil a determinar que as unidades de saúde ofereçam leitos separados para mães de natimorto e para aquelas diagnosticadas com óbito fetal, seja no SUS ou na rede privada do município. 

A vereadora Aava Santiago (PSDB-GO), autora do projeto que culminou na lei, partiu de uma experiência particular para elaborar essa que foi uma das primeiras proposituras do seu mandato. Durante o seu parto, ela dividiu o quarto com uma mãe enlutada e acompanhou todo o seu sofrimento. 

“Ela já estava com tudo pronto, tinha o quarto e todos aqueles mimos para receber as pessoas que iriam visitá-la no hospital. Ela teve uma complicação completamente inesperada e perdeu o bebê na hora do parto. Ela gritava de dor, de dor emocional mesmo. Aquilo foi muito impactante para mim e para a minha família. Eu pensava: ‘Não é possível que não tenha lei para isso [separação de leitos]’”, lembra. 

Depois que a lei entrou em vigor, não demorou para que a repercussão saísse do âmbito municipal e ganhasse a atenção do país, despertando a dor de mulheres que passaram pelo luto enquanto assistiam às outras com seus filhos nos braços. 

“Isso sim é a verdadeira ideologia de gênero: masculina, branca, hegemônica. Porque, ao mesmo tempo que é muito comum, era uma pauta inexistente na política pública, até ter uma mulher, especialmente atravessada pela maternidade, para falar sobre isso.” 

Segundo Santiago, após a repercussão, a primeira-dama Janja Silva a procurou e a colocou em contato com Nísia Trindade, ministra da Saúde na época, que deu início à elaboração do que resultaria na Política Nacional de Humanização do Luto voltada para esses casos. 

Questão de cor

De acordo com os dados do SIM (Sistema de Informação sobre Mortalidade), entre 2020 e 2024, o Brasil registrou 242.434 óbitos fetais e neonatais – neste caso, considera-se os primeiros 27 dias de vida. Deste total, 23% dos mortos eram pardos, 15,8% brancos, 1,32% pretos, 0,73% indígenas, 0,07% amarelos e 59% não tiveram a raça identificada durante o registro do óbito. 

A falta de dados raciais na notificação dos óbitos prejudica ainda mais a elaboração de políticas públicas eficazes, pois impede o mapeamento e a compreensão das necessidades das populações vulnerabilizadas pelo racismo.

“Com isso, acaba dificultando que essas necessidades virem pauta e as injustiças permanecem invisibilizadas. Se com informações já é difícil que governos façam políticas públicas que resolvam os problemas de iniquidade racial, imagine sem esse instrumento”, ressalta a epidemiologista Poliana Rebouças.

Ela é uma das responsáveis por uma pesquisa conduzida pelo Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde da Fiocruz Bahia que mostrou que aproximadamente 12% das mortes neonatais precoces – ou seja, de crianças com até sete dias de vida – poderiam ser evitadas se as desigualdades raciais não existissem no Brasil. 

O estudo analisou dados de 23 milhões de nascidos entre 2012 e 2019 e utilizou como indicador a identificação racial da gestante, considerando as implicações sociais desse recorte. Rebouças explica que a raça no Brasil não reflete diferenças genéticas, mas sim posições sociais diferenciadas e historicamente construídas. Nesse sentido, os pesquisadores partiram do entendimento de que mulheres pretas, pardas e indígenas enfrentam piores condições de vida, menor acesso a serviços de saúde de qualidade, e maior exposição à violência obstétrica. 

“Mulheres pretas e pardas tendem a fazer menos consultas pré-natal, ou de menor qualidade, ou as consultas têm início tardio, tendem a receber menos anestesia no parto, têm menor chance de terem acompanhante durante o parto e são mais frequentemente submetidas a intervenções desnecessárias”, ressalta Rebouças. 

O estudo revela que entre mulheres indígenas, a eliminação das desigualdades raciais poderia reduzir em mais de 60% a ocorrência de morte neonatal, baixo peso e de crianças nascidas pequenas para a idade gestacional. Já entre as mulheres pretas e pardas, a redução poderia passar de 40%

Rebouças ressalta que, embora políticas públicas tenham sido implementadas para reduzir as desigualdades socioeconômicas no país — como o Bolsa Família, que ampliou o acesso das mulheres ao pré-natal, e a expansão da atenção primária em todo o território nacional — essas medidas não foram suficientes para mitigar os impactos do racismo estrutural.

“Há um componente de iniquidade racial que as políticas não conseguem alcançar. Isso vem desde as heranças de escravidão e do colonialismo. Esse racismo molda sistematicamente o acesso e a utilização dos serviços pelas mulheres e também afeta a qualidade deles”, explica. 

“Há estudos que mostram que bairros predominantemente negros não são priorizados por especialistas, que são essenciais para prevenir doenças e possíveis agravamentos das condições de saúde dessas gestantes.” 

A pesquisadora ressalta que, no caso da população indígena, há ainda a falta de compreensão sobre as questões raciais que incidem sobre esse grupo e que acabam se transformando em barreiras de acesso a serviços básicos essenciais, incluindo pré-natal, parto, UTI (Unidade de Terapia Intensiva) neonatal e acompanhamento do bebê após o nascimento. 

“Enquanto a população negra enfrenta a discriminação principalmente em áreas urbanas, os indígenas têm uma realidade diferente, que também precisa ser considerada na formulação de políticas para reduzir a iniquidade. Eles vivem, em geral, segregados em reservas rurais, muitas vezes cercadas pelo agronegócio, e são constantemente ameaçados por garimpeiros e fazendeiros”, destaca. 

Segundo a epidemiologista, os óbitos perinatais, que vão da 22ª semana de gestação até os seis dias de vida da criança, não são captados adequadamente no país. Existem algumas hipóteses que podem explicar essa defasagem nos dados, como o fato de serem óbitos socialmente invisibilizados e tratados como menos importantes. 

“Também sabemos que os óbitos infantis neonatais têm uma prevalência maior em regiões mais pobres, sem capacidade de notificação formal. Tudo isso dificulta a burocracia para emitir a declaração de óbito, além da falta de infraestrutura ou capacidade técnica dos órgãos municipais e estaduais”, ressalta. 

“O que também percebemos ao analisar esses dados é que o nome da criança simplesmente não existe, a criança não é vista como alguém que já existiu.” 

Desde a década de 1990, a redução da mortalidade infantil no Brasil é comemorada por especialistas e pesquisadores. Ainda assim, Poliana destaca que, em um país marcado por desigualdades, não é possível considerar apenas taxas gerais ao tratar de saúde pública. 

“É fundamental fazer essa análise de forma desagregada. Ou seja, precisamos olhar como essa evolução se deu para cada grupo étnico-racial separadamente, e comparar essa evolução. Só assim conseguiremos enxergar as desigualdades raciais e implementar políticas direcionadas”, afirma.

Apesar das evidentes implicações raciais que cercam as mortes fetais e neonatais no Brasil, a Política Nacional de Humanização do Luto Materno e Parental não determina nenhuma ação ou diretriz voltada especificamente para o atendimento de mulheres negras e indígenas, desconsiderando as desigualdades que recaem sobre elas. 

“O Brasil é um país fraco em termos de políticas de reparação racial. Desde que aconteceu o fim da escravidão até hoje, fracamente o governo interveio nessa direção. Então, essa falta de recorte racial, mais uma vez, reproduz essa lógica de que o Estado brasileiro prefere ignorar que existe desigualdade racial, do que pagar essa dívida”, destaca Rebouças. 

Questão de educação

Mesmo que a Política Nacional de Humanização do Luto Materno e Parental seja um marco a ser comemorado, o sucesso da sua implementação não depende apenas de uma questão burocrática. Há também que se falar de educação e mudança cultural, segundo a ginecologista e obstetra Inessa Beraldo, vice-presidente da Comissão Nacional Especializada em Gestação de Alto Risco da FEBRASGO (Federação Brasileira das Associações em Ginecologia e Obstetrícia).  

“No serviço público, a perda gestacional muitas vezes é vista de uma forma menos importante, porque não se trata de um nascimento com vida. Os profissionais de saúde que lidam com obstetrícia estão habituados a lidar com comemoração”, pondera. 

“O nascimento é um evento comemorativo. Quando ele acontece com um feto morto, muitas vezes o próprio profissional da saúde não sabe como lidar com isso.” 

Falar sobre morte ainda é um tabu no Brasil e, no que diz respeito à cultura ocidental, também não é um assunto benquisto nas interações interpessoais, sendo muitas vezes escamoteado. Para a especialista, esse pensamento também recai sobre a formação dos profissionais de saúde, especialmente médicos que precisam lidar com perdas gestacionais e mortes neonatais. 

“É um tema que é pouco abordado durante a graduação e nas pós-graduações. O maior desafio que nós temos é essa mudança de postura dos profissionais. Então, quem já está formado precisa de uma atualização na forma de lidar com essas mulheres que chegam todos os dias aos nossos atendimentos.Trata-se de uma capacitação, uma revitalização desse conhecimento. Para quem ainda está chegando, entendo a necessidade de, de fato, incluirmos essa temática nos currículos de medicina”, pontua. 

Ainda que a gestação ou o parto resultem em uma morte, a mulher vai enfrentar o puerpério e passar por todas as fases de recuperação para que seu corpo retorne ao estado pré-gravídico. 

Além da atenção para o luto, Inessa ressalta a importância de que os médicos estejam atentos também às questões físicas e fisiológicas que vão afetá-la. 

“Independentemente do processo de luto pelo qual essa paciente passe, ela pode estar vivenciando, por exemplo, alterações nos níveis de pressão arterial, de glicose. Precisamos ter esse olhar atento para essa paciente e cuidar dela de forma integral, pensando na sua dor total, inclusive na dor emocional. As pessoas precisam ter uma educação que vá além da técnica”, defende. 

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