Sociedade

Luedji Luna: do Cabula para o mundo

Cantora fala sobre o financiamento coletivo do disco Um Corpo no Mundo e sobre os desafios de ser uma mulher negra no meio musical

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Cantora e compositora, Luedji Luna nasceu no bairro do Cabula, em Salvador. Foi na capital baiana que deu seus primeiros passos musicais, na Escola Baiana de Canto Popular. Hoje sediada em São Paulo, ela busca referências musicais em artistas brasileiros, como Milton Nascimento, mesclados com referências do reagge dos anos 80.

Por conta da temática imigrante de seu primeiro disco, “Um Corpo no Mundo”, atualmente em financiamento coletivo, Luedji vem incorporando também referências africanas, de músicos angolanos e de Cabo Verde.

Luedji é também co-fundadora do Palavra Preta, mostra que reúne compositoras e poetas negras de todo o Brasil.

Em entrevista à Djamila Ribeiro, Luedji Luna fala sobre música, racismo e os desafios de ser uma mulher negra no meio artístico brasileiro:”O que [nós mulheres negras] temos feito há mais de 500 anos é criar estratégias de sobrevivência”, critica. 

CartaCapital: Como você descobriu que queria ser cantora?
Luedji Luna: Que eu tenha memória, desde a infância. Era minha brincadeira predileta! Cantar, fazer música, todo meu imaginário durante infância era construído em torno da música, mas eu só assumi mesmo com 25 anos. Não venho de uma família de músicos, e, terminado o colégio, ela nunca foi uma opção. Nós não temos uma educação direcionada para nossas potencialidades, e o sonho não é uma possibilidade, sobretudo quando se é negro e a garantia da sobrevivência é uma preocupação prioritária.

CC: Quais são suas maiores influências?
LL: Na música, eu fui muito influenciada pelo que meus pais ouviam. Milton Nascimento, Luiz Melodia e Djavan eram os principais nomes, assim como todo o reggae da década de 80 que meu pai escutava também: Gregory Isaac, Alpha Blond, Peter Tosh, e Edson Gomes – é daí que surge minha paixão pelos graves e pelos sopros.

Mas minha grande escola, sem dúvida, foi o Raciocínio Lento, um grupo de amigos do trabalho do meu pai que se reunia para fazer uma batuca no quintal, tocando o que eu tinha de melhor do cancioneiro popular brasileiro. Foi toda uma infância escutando essas canções nos finais de semana.

Hoje, com meu projeto “Um Corpo no Mundo”, busco referências na música de Angola e Cabo Verde. E me sinto muito identificada com trabalho da Mayra Andrade, Sara Tavares, Aline Frazão, e do baiano Tiganá Santana, que compõe também em línguas banto.

CC: O que é ser mulher negra pra você?
LL: Sabe aquele conceito que a gente aprende na escola na aula de Biologia? Que existem seres vivos, os autotróficos, capazes de produzir o próprio alimento, como as plantas, por exemplo. Para mim, ser mulher negra é isso: ter a capacidade de tirar força de si mesma, de ser sua própria fonte de energia, de cura e de amor. É solitário, mas é potente também…

CC:É possível separar a arte do político?
LL: Sim, é possível, mas não é o meu caso. Eu sou filha de dois pais militantes, fui educada nesse sentido, sou um projeto político de uma geração de filhos de militantes da década 70 e 80, então, a política era pauta do café da manhã.

É impossível fazer uma arte dissociada do político. Primeiro porque [o ativismo político] é necessário para garantir minha própria dignidade e sobrevivência como mulher negra, mas eu milito também porque me sinto responsável com essa história de luta anterior a minha existência, que permitiu a minha própria. Eu me sinto responsável!

CC: Qual o significado do seu nome?
LL: Meu nome significa “amizade”, mas um amigo angolano me disse que pode significar também “rio” em tchokwe, de onde o nome se origina. Luedji também é um romance do escritor angolano Pepetela, que conta a história dessa personagem que de fato existiu, liderança do povo Lunda e considerada a mãe de Angola.

CC: Quais são ou foram as maiores dificuldades que encontra no meio musical? É mais difícil para a mulher negra?
LL: A primeira e principal dificuldade é não ter recurso! Sem dinheiro fica muito mais difícil executar qualquer projeto. Eu só não digo que é impossível porque nós, mulheres negras, somos empreendedoras por excelência. O que temos feito há mais de 500 anos é criar estratégias de sobrevivência.

Existe um apagamento sistemático dos nossos corpos e saberes negros.  Na arte não é diferente. Eu tive uma crise de referência quando decidi ser cantora e compositora porque não sabia da existência dessas mulheres. Ver a Ellen Oléria ganhando uma premiação em rede nacional reacendeu minha esperança. Meu sonho também é possível!

CC: Como foi sua infância? Onde nasceu e onde vive atualmente?
LL: Foi uma infância rodeada de amor e silêncio. Nasci no [bairro] Cabula, em Salvador, cidade pra onde sempre retorno durante todo o ano, apesar de morar em São Paulo. Fui uma filha planejada de um casal de negros que estão casados até hoje, fui criada por mãe e pai, literalmente, ambos presentes. Fui uma criança privilegiada, que teve dois pais esforçadas a dar o melhor de si, nunca me faltou nada, nem material, nem imaterial. Mas o amor que eu recebia dentro de casa, não encontrava fora.

Sofri muito na escola com bullying, que na verdade era racismo, pois era quase a única negra da sala, e sempre o alvo das “brincadeiras”. Sofri com isso do pré-escolar até quase o fim do colegial.

Sofria em silêncio, não dividia isso com minha família, até hoje não sei por que, não sei se por sentimento de culpa (que existia mesmo eu sendo a vítima), ou vergonha, mas eu acho mesmo que eu queria poupar eles do sofrimento em me ver sofrer.

Com uns 14 ou 15 anos, minhas notas começaram a declinar e os professores a se preocupar. Foi quando chamaram meus pais ao colégio para uma conversa. Só assim eles descobriram que a filha não ia bem na escola, não por dificuldades de aprendizado, mas porque era triste. Comecei a escrever para romper com esse silêncio, minha música parte desse lugar.

CC: Quais são seus sonhos?
LL: Fazer o que eu tenho de fazer nessa terra e viver a vida em paz.

CC: Como está a campanha de financiamento coletivo para seu disco?
LL: A campanha segue a passos lentos, mas firme. Parece que o grande boom do financiamento coletivo de projetos já passou, mas ela segue crescendo de pouquinho em pouquinho. Para colaborar, é só entrar no site Catarse, procurar pelo projeto “Um Corpo no Mundo” e fazer a contribuição de qualquer quantia.

CC: Você disse que está meio aqui, meio em São Paulo. Que projetos você toca aqui e lá ao mesmo tempo?
LL: Sim, fiquei dois anos em São Paulo e só voltava a Salvador em dezembro nas festas de final de ano. Mas 2017 tem sido diferente: fiquei três meses ininterruptos em Salvador, fiz vários shows e uma mostra, a “Palavra Preta: Mostra nacional de negras autoras”, idealizada por mim e pela cantora, compositora e poeta de Brasília Tatiana Nascimento.

A mostra reuniu, em janeiro, mais de 20 compositoras e poetisas negras de Salvador e de outras regiões do país. Depois dessa experiência no verão, decidi ficar nessa ponte São Paulo-Salvador neste ano. Minha cidade está bem viva, produtiva, com espaços novos e projetos pulsando. Estou na articulação para fazer a comemoração de um ano da mostra Palavra Preta em Salvador, além de shows e a gravação do disco em outubro.

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