Sociedade

“Lista suja garantiu ao Brasil reconhecimento internacional”

Com divulgação de cadastro de empregadores que promovem escravidão, país inovou no combate à prática

A recessão econômica e o aumento de desemprego criam ambiente fértil para a precarização do trabalho
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Em meio à batalha judicial envolvendo a publicação da chamada lista suja, a comunidade internacional teme retrocessos no Brasil, antes considerado referência mundial no combate ao trabalho em condições análogas à escravidão.

Em entrevista à DW Brasil, Antônio Carlos Mello, coordenador do Programa de Trabalho Forçado da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil defende que a lista seja publicada pelo governo, ainda que prossigam diálogos entre os infratores, o Ministério do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho.

“A lista suja é objeto de transparência, de controle social. As informações da lista são públicas. Não há motivo para não divulgá-la”, afirma.

O documento não é divulgado desde junho de 2014. No final daquele ano, uma liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) protelou a publicação do cadastro que identifica os empregadores que promovem a escravidão contemporânea no Brasil. Do final de 2016 até agora, novos capítulos judiciais também impediram a publicação da lista suja.

DW Brasil: Gera apreensão à OIT o fato de o Brasil não publicar, desde 2014, a lista suja do trabalho escravo?

Antônio Carlos Mello: Em dezembro de 2014 houve uma liminar, no apagar das luzes, em favor de uma ação proposta no Supremo pela Associação Brasileira das Incorporadoras (Abrainc). Essa liminar perdeu o objeto quando saiu a nova portaria de estrutura da lista em meados de 2016. Mas, apesar da emissão dessa nova portaria, a lista continuou não sendo publicada. Em seguida houve a transição de governo.

DW: Essa portaria foi editada no último dia do governo da então presidente, Dilma Rousseff. Depois houve a decisão da presidente do STF, Cármen Lúcia, de extinguir a ação da Abrainc. Porém, num novo capítulo, começa o embate entre Ministério Público do Trabalho e Ministério do Trabalho. Como o senhor enxerga as últimas decisões judiciais?

ACM: Em abril de 2016, a ONU, num esforço coordenado com a OIT, se posicionou oficialmente a respeito de uma série de questões relativas ao trabalho escravo. A ONU menciona que, desde 1995, quando o Brasil reconheceu que havia em seu território trabalho escravo, houve um avanço. O Brasil foi um dos países que mais avançou no combate ao trabalho escravo, e isso é reconhecido pela comunidade internacional.

Entre as ferramentas que garantiram essa visibilidade do país está o cadastro de empregadores (a lista suja). A ONU insta o governo brasileiro a manter a divulgação da lista, o que garante ao Brasil a posição de referência internacional. A posição da OIT é de apoio à divulgação da lista.

É importante o diálogo amplo e democrático sobre essa portaria. Mas a lista suja é objeto de transparência, de controle social. As informações da lista são públicas. Não há motivo para não divulgá-la. A divulgação não traz nenhum malefício econômico para o Brasil. Ela separa o joio do trigo e protege determinados segmentos econômicos de estigmas e manchas que se joguem em um setor por não se ter claramente definido quem foi o contraventor.

DW: O governo alega que há problemas na garantia ao amplo direito de defesa. O Ministério Público contesta, pois há duas instâncias de recurso e a inclusão do nome do empregador não é automática. Qual sua avaliação?

ACM: Nosso conhecimento é que o processo administrativo tem instâncias que garantem o amplo direito de defesa. Temos notícias de ajuizamento de casos em que realmente se questionam determinados autos de infração. Mas o processo administrativo tem a participação do suposto infrator e existe amplo direito de defesa até onde temos conhecimento.

DW: A portaria nova introduziu um auto de infração específico para quando for identificado o trabalho escravo. Isso é positivo?

ACM: É a infração que chamam de auto 444. O Código Penal, no artigo 149, lista uma série de condições que, existindo em conjunto ou não, caracterizam trabalho em condições análogas à escravidão.

O 444 é produto da discussão que aconteceu com os empregadores. Você não tem mais um conjunto dos autos de infração que, somados, acabam por caracterizar um contexto de trabalho escravo. Tem agora um auto de infração específico. E você vai trabalhar em cima desse auto com o amplo direito de defesa. Consideramos uma evolução.

Antes eram diversos autos de infração que, conjuntamente, dentro do critério de observação empírica, o auditor fiscal classificava como trabalho escravo. Por exemplo: se tinha alojamento precário, sem proteção, sem vedação, sem proteger o trabalhador rural contra animais peçonhentos, se você tem sistema de armas, vigilância armada, o sistema de barracão (condicionar o trabalho para pagamento de dívidas), se chegava a uma situação que era caracterizada como trabalho escravo. Hoje você tem um auto de infração específico.

Nós desconhecemos, na OIT, outra experiência de publicação de listas da maneira como acontece no Brasil

DW: Para que não pairem dúvidas?

ACM: Exatamente. A OIT acredita que é saudável a discussão sobre a objetividade do conceito. Essa discussão está evoluindo. A OIT já acompanhou fiscalizações e o que eu vi foi uma preocupação muito grande dos fiscais com relação à classificação do contexto como sendo análogo à escravidão.

O que eu conheço do trabalho dos fiscais no Brasil é que realmente é muito criterioso. Não posso falar de maneira genérica e dizer que acontece em 100% dos casos. Há muitos questionamentos de empregadores. Seria interessante que exemplos fossem trazidos à tona por esses grupos que clamam por uma maior objetividade nas infrações.

DW: Há países que seguiram o exemplo brasileiro de publicação da lista suja?

ACM: Nós desconhecemos, na OIT, outra experiência de publicação de listas da maneira como acontece no Brasil. O Brasil é inovador neste sentido.

DW: O senhor teme que essa polêmica e a posição do atual governo possam tirar o Brasil do patamar de referência internacional?

ACM: Desde a condenação da Corte Interamericana com o caso da Fazenda Brasil Verde [o Estado brasileiro foi condenado por não prevenir a prática de trabalho escravo moderno e de tráfico de pessoas na fazenda, que manteve 128 pessoas exploradas de 1997 a 2000], a comunidade internacional está preocupada com retrocessos no Brasil. É uma preocupação que o Brasil tenha seu papel de inovação e referência ameaçado por retrocessos, como a não publicação da lista suja.

DW: A manifestação da ONU sobre o assunto ocorreu em abril de 2016, portanto, ainda no governo de Dilma Rousseff.

ACM: Sim. Temos que deixar claro que a lista deixou de ser publicada no governo anterior. Problemas como a diminuição de auditores fiscais do trabalho vêm de outras administrações. Não poderíamos estigmatizar o atual governo com relação a esse enfraquecimento do combate ao trabalho escravo, como se tivesse início agora.

DW: O Brasil vive um grave momento de recessão econômica, tem 13 milhões de desempregados e está em curso a votação de uma reforma trabalhista. A OIT teme que possa haver maior precarização do trabalho?

ACM: Não existe ainda posicionamento claro da OIT sobre as reformas propostas. Não há dúvida que recessão econômica com aumento de desemprego é ambiente fértil para maior informalidade e precarização do trabalho.

Por Malu Delgado

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