Saúde

“Like no Facebook e conta verificada no Instagram não põem arroz na mesa”

Bia Ferreira conta as dificuldades de uma artista independente na pandemia

(Foto: Gabriella Maria/Divulgação) (Foto: Gabriella Maria/Divulgação)
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A cantora e compositora Bia Ferreira, 27 anos, começou a aprender música com 3 anos de idade e ganhou habilidade em vários instrumentos. Rodou o Sudeste e o Nordeste, onde parava nas cidades, se apresentava em locais públicos, passava o chapéu e seguia viagem.

Quando chegou a Aracaju, fascinou-se pela capital sergipana e resolveu ficar um tempo. Foi tocar na orla da praia para “fazer uma grana”, conheceu movimentos sociais e coletivos negros. “Foi um período importante e enriquecedor”, diz.

Em 2016 mudou-se para São Paulo, ocupou o Ministério da Cultura quando Temer deu o golpe e conheceu o Grupo de Articulação de Política Preta (GAPP). “Foi daí que passei a desenvolver arte e política”, conta.

Em 2018 gravou em voz e violão Cota Não É Esmola, uma canção que ela já tocava há muito tempo, mas que acabou se tornando um sucesso no Youtube com cerca de 10 milhões de visualizações contabilizadas até hoje, sem qualquer impulso patrocinado. “É uma música que tem 8 minutos. Não achei que seria agradável por que não é o formato padrão”. Bia explica que ela foi lançada em um contexto de discussão do sistema de cotas na USP e Unicamp.

A música foi um divisor de águas na carreira da cantora, que passou a ser contratada para shows e convidada para saraus e festivais de movimentos estudantis. Outros singles gravados lançados na internet vieram.

E em setembro do ano passado, Bia Ferreira lançou seu primeiro álbum, Igreja Lesbiteriana, Um Chamado, com nove faixas, com casa cheia no Sesc Pompeia, em São Paulo. No mês da consciência negra fez mais três shows com sua banda. “Mas é um mês que tradicionalmente tocamos”, conta. Bia tem uma contundente mensagem tanto em suas músicas como nos atos que participa contra o racismo, o preconceito, a política genocida do Estado contra o povo preto.

O próximo show de trabalho de seu primeiro álbum estava marcado para junho. E o disco no formato em vinil chegou no começo da quarentena. A artista começava a experimentar reconhecimento e ascensão profissional que prometia uma vida melhor.

Desabafo

Dois meses depois de isolamento social, no dia 17 de maio, ela foi às redes sociais e fez um desabafo de sua realidade em meio à pandemia do novo coronavírus. No vídeo, ela relata que vinha recebendo muitos pedidos de ajuda, mas não tinha como realizá-los.

“Até 2018 era uma artista de rua que dormia na praça ou em ocupação”, num recado para quem achava que dois anos de carreira profissional de uma artista independente seria suficiente para ter algum dinheiro disponível na conta. “Às pessoas que estão me pedindo ajuda, vocês estão perguntando se tenho o que comer, se minhas contas estão pagas, se tenho lugar para morar?”

Bia Ferreira fala aos seguidores que ela não é um tipo de artista que “que faz um discurso legal que contrata, que as pessoas querem pagar para ver”. Diz que faz alguns poucos shows por mês com cachê, e todos os outros são voluntários, pelas causas que acredita.

“Atenção às redes que me veem com dinheiro”, profere. “Como vou produzir arte? Não tenho como lançar música, como trabalhar. Tenho 10 milhões de visualizações no clipe Cota Não É Esmola e não recebi um centavo por direito (autoral)”.

Segundo ela, “as mesmas pessoas que eram patrocinadas antes da quarentena são as mesmas que estão sendo patrocinadas na quarentena. Nada mudou! Sou artista periférica, preta, sapatão, que fala de política e não tem ninguém querendo se associar ao meu nome”.

A cantora conta que as palavras de desabafo são porque não estava conseguindo conviver com uma realidade que as pessoas pensavam dela. “Muitos amigos pretos artistas na mesma situação que eu, não têm coragem de chegar e falar sobre isso publicamente”.

Redes sociais

A artista estava morando no Rio de Janeiro, mas foi para fora da cidade onde pudesse se sentir mais segura da pandemia. Teve que entregar o imóvel por não ter mais dinheiro para pagar o aluguel e a mudança para a nova casa que, segundo ela “só tem teto”, só foi possível com a ajuda de um coletivo preto após o seu desabafo nas redes sociais.

“Enquanto não tinha pandemia, quando não tinha show para fazer, eu mesmo me produzia. Não querem me contratar, então vou arrumar um lugar, vou chamar as pessoas, vou fazer meu ‘corre’. Vou tocar na rua, vou declamar poesia no metrô, eu gosto”.

Mas agora, confinada, diz que somente lives não é suficiente à sobrevivência e pelo fato de não ter os meios de produção, como alguns artistas mantém, como o chamado home studio (estúdio de música básico caseiro), a situação piora. “Like no Facebook e conta verificada no Instagram não põem arroz na mesa”. Conta verificada no Instagram significa selo de autenticidade de figura pública conhecida, principalmente artistas, na plataforma digital.

Para ela, é necessário retorno financeiro além de milhares de pessoas que a seguem nas redes sociais. “Você acha que artista vive de quê? Voltei a viver com o que sempre vivi, rodando chapéu, agora virtual”.

Depois do desabafo na internet, Bia Ferreira diz estar recebendo “uma enxurrada de amor” e alguma ajuda de dinheiro, ainda que bastante limitada, e auxílio para tentar fazer lives que tragam algum retorno financeiro. Também tem se inscrito em editais de música virtual.  “A gente quer dizer para o povo preto que nós somos maioria e, por isso, acredito na minha arte”, finaliza.

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