Sociedade

Legalizar as drogas

“A maioria dos usuários não vira dependente, faz uso recreativo. É preciso proteger um como liberdade individual e o segundo na perspectiva da saúde”. Por Jean Wyllys

"Eu sou a favor da legalização das drogas, porque acho que a única maneira de enfrentar o narcotráfico e toda a violência decorrente dele é legalizar"
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Nos últimos dias, veio à tona uma sentença do juiz Frederico Ernesto Cardoso Maciel, do Distrito Federal, que absolveu um homem que tinha sido detido pela polícia com 52 trouxas de maconha. Para o juiz, a proibição dessa droga é inconstitucional, já que a portaria do Ministério da Saúde que incluiu os princípios ativos da maconha na lista de entorpecentes ilícitos, deixando fora outras substâncias que também têm efeitos entorpecentes, carece de fundamentação técnica e científica — o que é verdade. O MP apelou e o caso será resolvido agora pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal em novo julgamento. “Soa incoerente o fato de outras substâncias entorpecentes, como o álcool e o tabaco, serem não só permitidas e vendidas, gerando milhões de lucro para os empresários dos ramos, mas consumidas e adoradas pela população. Isso demonstra que a proibição de outras substâncias entorpecentes recreativas, como o THC, são fruto de uma cultura atrasada e de uma política equivocada, e violam o princípio da igualdade, restringindo o direito de uma grande parte da população de utilizar outras substâncias”, escreveu o juiz.

Ele merece ser parabenizado pela coragem, num país com governantes, parlamentares e agentes da justiça que calam a boca ou são cúmplices de uma política de guerra as drogas que só traz violência, preconceito, estigmatização e a morte de milhares de crianças e jovens pobres das favelas, além de interferir nas liberdades individuais.

O juiz deve saber que enfrentar a demagogia punitiva e a hipocrisia na questão das drogas é difícil. Na Câmara dos Deputados, eu enfrentei o projeto de lei de Osmar Terra (PMDB-RS) de “endurecimento” da política de drogas, que propunha piorar uma legislação que já é ruim. Contudo, infelizmente, só a bancada do PSOL militou contra. Entre outras aberrações, o que tem avançado nos últimos tempos no Brasil, além da violência que a “guerra às drogas” produz, é a internação compulsória de usuários, que significa um retrocesso na política antimanicomial brasileira e o aporte de dinheiro público em comunidades terapêuticas ligadas a instituições religiosas fundamentalistas que não contam com atendimento à saúde mental ou física, e, em alguns casos já registrados, submetem os pacientes a trabalho escravo. São pontos criticados oficialmente pelo TCU, Fiocruz, conselhos de psicologia e muitos outros órgãos, que não são ouvidos.

É preciso corrigir essas aberrações com urgência, que vão na contramão da revisão que outros países têm feito, substituindo a “guerra às drogas” por um tratamento na perspectiva da saúde pública e das liberdades individuais. No vizinho Uruguai, a maconha foi legalizada; na Argentina, a Corte Suprema declarou inconstitucional a criminalização do consumo de drogas e do cultivo para uso pessoal, e até nos EUA, o presidente Obama fez recentemente declarações bastante sensatas, reconhecendo que a criminalização não é uma boa política. Mas no Brasil é difícil e, quando tem boas iniciativas – que mesmo sem chegar ao fundo do problema significam um avanço importante – como o programa para os usuários de crack implementado pelo prefeito Fernando Haddad em São Paulo, o “Braços abertos”, elas são desqualificadas por setores da política e da mídia que, com uma grande irresponsabilidade, só defendem a repressão.

Eu sou a favor da descriminalização do consumo e sou radicalmente a favor da legalização de todas as drogas, porque acho que a única maneira de enfrentar o narcotráfico e toda a violência decorrente dele é legalizar. Essa é, aliás, a posição do PSOL, que tem um grande acúmulo e muita pesquisa e trabalho sério e comprometido sobre o tema. Estamos preparados para dar esse debate.

Para isso, precisamos ser claros, porque a questão das drogas está cercada de falácias e preconceitos. Existe o usuário, que faz uso recreativo, e o dependente, que é outra situação. Mas como diz Eduardo Galeano, “a culpa não é da faca”. A maioria dos usuários de drogas não vira dependente, mas apenas faz uso recreativo, por isso é necessário distinguir o uso do abuso, proteger o primeiro como liberdade individual e tratar do segundo na perspectiva da saúde, ajudando o dependente, como se faz com o alcoólatra ou com aquele que abusa do Lexotan ou de determinados analgésicos ou antidepressivos. Pensemos no álcool: o abuso dele traz mais problemas à sociedade que o próprio crack, enquanto seu uso recreativo não traz problema algum, é socialmente aceito, faz parte da cultura, da religião e é até mesmo incentivado. Quase toda a população consome álcool, mas nem toda a população é alcoólatra! Da mesma forma, os usuários recreativos de maconha, cocaína, êxtase ou qualquer outra droga têm de ter sua liberdade respeitada: se alguém tem o direito de encher a cara num bar ou em casa, também tem o direito de fumar um baseado! Você nunca fez? Isso está dentro da liberdade individual, e a pessoa tem de estar consciente dos danos que aquela droga pode causar.

O cigarro (de tabaco) é a droga que mais mata e ninguém vai preso por isso! A gente pode criar uma política de prevenção aos males do fumo porque o fumo é legal, quem fuma hoje sabe que o cigarro pode provocar câncer de pulmão a longo ou a médio prazo, mas a pessoa tem o direito de fumar se ela quiser. Da mesma maneira, a gente só tem a lei seca e políticas para conter os danos do uso do álcool porque o álcool é regulamentado. E ambas as substâncias são produzidas de acordo com determinadas regras, com informação explícita sobre o seu conteúdo e princípios ativos e mecanismos de controle estatal que devem garantir a qualidade do produto, e são comercializadas dentro do circuito legal, com restrições sobre a quem, quando e onde podem ser vendidas. O mesmo deveria acontecer com a maconha e outras drogas atualmente ilícitas.

Por outro lado, as políticas de criminalização e combate, em todo o mundo, apenas reforçaram o poder das redes de crime organizado, já que estas se valem da corrupção do agente público para atuar livremente, com grande lucro. As drogas que hoje são ilegais, na prática, têm sua comercialização regulada pelo Estado de maneira informal, através das polícias e outros agentes do sistema. Falamos em uma economia paralela que seis anos atrás se estimava movimentar mais de 800 bilhões de dólares. Tudo isto apesar da repressão patrocinada por todos os países, principalmente os EUA. Foi nesse país que, entre 1920 e 1933, o fortalecimento da máfia se deu exatamente com a proibição do consumo e da venda do álcool, que não trouxe qualquer benefício para a população.

Há ainda toda uma série de consequências sociais das políticas atuais, que parecem ser ignoradas pela população mais abastada — cuja maior preocupação é a violência do usuário do crack e o fato de o filho ser abordado pelo traficante na saída do colégio —, e que influem diretamente na vida das comunidades mais pobres, que vivem à margem do Estado, como forma de higienização social. A forma como as crianças e adolescentes das comunidades são vulnerabilizados ao crime organizado pela ausência de interesse do Estado em lhes dar as mesmas condições de humanização e de vida com pensamento jamais será corrigida com políticas de repressão ao consumo de drogas! Muito pelo contrário, só piora!

Por último, a criminalização não produz qualquer benefício à sociedade nem sequer naquilo que implicitamente promete. Alguns ingenuamente ainda acreditam que a simples proibição impede que alguém faça uso de alguma substância, mas está provado que isso não acontece. O consumo de drogas não se reduziu pela criminalização, mas aconteceu o contrário. E o que temos, então, é crime organizado, violência, corrupção policial, insegurança, milhares de mortes, criminalização de jovens das favelas e das periferias, presídios lotados onde esses jovens têm seu futuro aniquilado e drogas de má qualidade vendidas de maneira informal, sem controle, a pessoas de qualquer idade, em qualquer sítio e sem pagar impostos. Tudo errado!

O caminho é outro. Legalizar o consumo é tirar o usuário recreativo da inútil marginalidade e estigmatização. Regular a venda e permitir a esse usuário que produza o suficiente para seu próprio consumo é reduzir a influência do traficante e, portanto, reduzir a violência, a criminalidade, a marginalidade e a morte.

O Brasil precisa mudar o paradigma. Hoje o País é um importante corredor do tráfico internacional, as redes de tráfico operam livremente no país, beneficiadas pela corrupção policial. Nas comunidades carentes, as crianças, sem educação e sem perspectiva, veem no tráfico uma forma de mobilidade social. E quem é preso é sempre aquele jovem que atua no varejo, nunca o grande traficante que alimenta a corrupção e a violência e leva o dinheiro para os paraísos fiscais. Ou seja, as políticas atuais jamais surtirão efeito, como hoje não surtem. Se avaliarmos a eficiência dessas políticas em relação ao dinheiro empregado nelas e os danos terríveis que causaram, o erro fica evidente.

O problema, como quase sempre, é a falta de coragem para bancar debates difíceis como esse. O mais fácil, sempre, é defender o status quo, se filiar aos discursos mais demagógicos ou se fazer de bobo. Mas a nossa função, como referentes políticos, é assumir riscos, inclusive eleitorais, para defender as ideias em que acreditamos e promover os debates que achamos sinceramente que o país precisa. E esse é um deles. Quanto mais tempo demorarmos, mais gente vai morrer inutilmente e mais jovens vão ter seu futuro trancado.

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