Sociedade

Juíza diz em sentença que homem é integrante de grupo criminoso “em razão de sua raça”

A defesa do acusado vai pedir a nulidade do processo ‘pelo crime de racismo e evidente parcialidade da juíza’

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A juíza Inês Marchalek Zarpelon, da 1ª Vara Criminal da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba (PR), proferiu uma sentença atrelando a raça de um suspeito a possíveis crimes de furtos e organização criminosa. Natan Vieira da Paz, de 48 anos, foi condenado a 14 anos e 2 meses de prisão, mas sua defesa quer anular a processo por causa de racismo.

Em um trecho da sentença condenatória, Zarpelon destaca: ““Sobre sua conduta social nada se sabe. Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça, agia de forma extremamente discreta os delitos e o seu comportamento, juntamente com os demais, causavam o desassossego e a desesperança da população, pelo que deve ser valorada negativamente”.

Além de Vieira da Paz, outros oito suspeitos foram julgados e condenados no mesmo caso pela juíza.

A suspeita é de que o grupo integre uma organização criminosa que, entre os meses de janeiro de 2016 e julho de 2018, praticou furtos e “saidinhas” de banco nas praças Carlos Gomes, Rui Barbosa e Tiradentes, na região central de Curitiba (PR).

Eles teriam furtado mochilas, bolsas, carteiras e celulares.

A advogada de defesa de Vieira da Paz, Thayse Pozzobon, afirmou à reportagem de CartaCapital que pedirá a nulidade da sentença “pelo crime de racismo e evidente parcialidade da juíza”.

“Vou solicitar a nulidade às comissões de Igualdade Racial e Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil e também recorrer ao Conselho Nacional de Justiça e à Corregedoria”, afirmou.

“Independentemente do que está sendo apurado no processo, ela não tem o direito de avaliar a raça dele. Trata-se de um crime patrimonial e a lei deve se ater a isso. O que as circunstâncias de integrar uma organização criminosa ou praticar crimes têm a ver com a raça dele?”, questiona a advogada.

“Isso revela seu olhar parcial e um racismo latente que ainda temos que conviver em pleno século XXI”, criticou.

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O nome do SER HUMANO violado com as palavras proferidas pela magistrada é Natan Vieira da Paz, homem, 42 anos, negro. Autorizada pelo cliente estou divulgando o nome na esperança de que repercuta mais ainda. . Associar a questão racial à participação em organização criminosa revela não apenas o olhar parcial de quem, pela escolha da carreira, tem por dever a imparcialidade, mas também o racismo ainda latente na sociedade brasileira. Organização criminosa nada tem a ver com raça, pressupor que pertencer a certa etnia te levaria à associação ao crime demonstra que a magistrada não considera todos iguais, ofendendo a Constituição Federal. Um julgamento que parte dessa ótica está maculado. Fere não apenas meu cliente, como toda a sociedade brasileira. O Poder Judiciário tem o dever de não somente aplicar a lei, mas também, através de seus julgados, reduzir as desigualdades sociais e raciais. Ou seja, atenuar as injustiças, mas jamais produzi-las como fez a Magistrada ao associar a cor da pele ao tipo penal.

Uma publicação compartilhada por Thayse C. Pozzobon (@thaysepozzobon) em

Pozzobon também mencionou o caso em um post em suas redes sociais, onde afirma que um julgamento que parte desta ótica está “maculado”.

“Um julgamento que parte dessa ótica está maculado. Fere não apenas meu cliente, como toda a sociedade brasileira. O Poder Judiciário tem o dever de não somente aplicar a lei, mas também, através de seus julgados, reduzir as desigualdades sociais e raciais. Ou seja, atenuar as injustiças, mas jamais produzi-las como fez a magistrada ao associar a cor da pele ao tipo penal”, avaliou.

O Tribunal Pará noticiou a prisão de Vieira da Paz em fevereiro de 2019, bem como de outros suspeitos de praticar o crime do “cavalo louco” em Curitiba, que é o furto na saída de agências bancárias.

Segundo a advogada de defesa, no momento, ele se encontra respondendo ao crime em liberdade pelo excesso de tempo de julgamento do crime.

Motoboy humilhado

Na semana passada, o entregador de aplicativo Matheus Pires Barbosa foi humilhado com injúrias racistas por um morador de um condomínio em Valinhos, interior de São Paulo, ao efetuar uma entrega. No vídeo que circulou nas redes sociais, é possível ver Mateus Almeida Prado, o morador, dizendo a Barbosa que ele tem “inveja” dos moradores do condomínio e de sua cor branca.


A defesa do motoboy apresentou, na segunda-feira 10, uma representação criminal por injúria racial contra o homem. De acordo com o advogado Márcio Santos Abreu, a defesa de Barbosa vai tentar provar que o agressor não estava em surto provocado pela esquizofrenia, como alegou o pai do rapaz.

OAB/PR manifesta repúdio

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Paraná publicou uma nota de repúdio sobre o caso. No texto, a organização afirma que irá encaminhar o caso às autoridades do Poder Judiciário e do Ministério Público e solicitar um pedido de apuração e aplicação das sanções cabíveis, além de acompanhar o desenrolar dos fatos.

Veja a nota na íntegra:

A Ordem dos Advogados do Brasil – Seção do Paraná, juntamente com suas comissões da Advocacia Criminal e da Igualdade Racial, vem a público manifestar seu veemente repúdio à fundamentação lançada em sentença da magistrada Inês Marchelek Zarpelon, da 1ª Vara Criminal de Curitiba, ao tecer considerações sobre a cor de um cidadão como algo negativo, na análise de sua conduta social. Na decisão, afirmou-se que referida pessoa seria “seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça”.

A afirmação é inaceitável e está na contramão do princípio constitucional da igualdade e da não discriminação. Cor e raça não definem caráter e jamais podem ser utilizadas para fundamentação de sentença, notadamente na dosimetria da pena.

A humanidade deve caminhar no sentido da eliminação de todos os preconceitos, notadamente os relacionados à origem, raça e cor, pois somente assim alcançaremos o ideal de uma sociedade livre, justa, fraterna, igualitária e solidária, estabelecido, na Constituição Federal, como um dos objetivos da República Federativa do Brasil.

A cultura de séculos de opressão, que vem desde o sequestro violento de negros na África para exploração de suas vidas Brasil, com a violação repetida e sistemática de seus mais fundamentais direitos, é narrada em incontáveis publicações científicas atestando as consequências terríveis que geram na Justiça Criminal.

A OAB-PR comunica que, na condição de defensora intransigente das garantias fundamentais, está encaminhando às autoridades do Poder Judiciário e do Ministério Público pedido de apuração e aplicação das sanções que o caso reclama e que acompanhará todo o desenrolar desses fatos.

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