Sociedade

Juiz narra a miséria dos injustiçados que lotam as cadeias brasileiras

As crônicas de Sidinei Brzuska mostram que, mesmo nas piores situações, o ser humano é capaz de reescrever sua própria história

Manuscritos. Há 23 anos, o magistrado coleciona os relatos dostoieviskianos daqueles que não têm a quem recorrer (FOTO: ARQUIVO PESSOAL)
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“Pura obra do destino.” Assim o juiz Sidinei José Brzuska, titular da 3ª Vara Criminal de Porto Alegre, define sua trajetória na magistratura. “Decidi estudar Direito quando descobri que não tinha matemática na faculdade”, conta o ex-borracheiro, ex-frentista de posto de gasolina, ex-office-boy, filho de um lavador de carros e uma dona de casa nascido em Três de Maio, interior do Rio Grande do Sul. Aos 29 anos, novamente por acaso, assumiu uma Vara Criminal com jurisdição na execução penal. No primeiro dia de trabalho, um motim no presídio da cidade obrigou-o a intervir. E lá se vão 23 anos. Foram dez anos no Presídio Central, com ao redor de 5,3 mil presos, outros cinco no Presídio Feminino Madre Palletier, que abrigava 750 detentas, além de serviços no interior do estado.

As dificuldades vividas na infância, o olhar atento à pobreza, as desigualdades sociais e a convivência com os iguais, somados às experiências próprias de vida, moldaram a sua forma de enxergar o mundo. “A injustiça sempre me doeu. Foi por essa dor que resolvi seguir a carreira da magistratura. Queria fazer algo para amenizar esse quadro. Não vejo nada de muito relevante na minha carreira”, diz. No dia a dia, entre as galerias de presídios, Brzuska percebeu a existência de um Judiciário cada vez mais distante do cidadão. “Penso que isso tem muito a ver com a forma que adotamos para selecionar os juízes, os formatos científicos dos concursos. Privilegiamos o conhecimento técnico e jurídico, em detrimento da vocação.”

“A única coisa certa é que o sistema não é justo”

O juiz inovou, no entanto, na forma e no conteúdo. Pelas redes sociais, passou a contar as experiências pessoais em forma de crônica. Descreve situações reais ao longo de sua carreira de magistrado. Narra as iniquidades cometidas pelos tribunais, onde milhares de homens e mulheres correm o risco de amargar penas injustamente aplicadas. Dono de memória privilegiada, detalha e comenta fatos das masmorras por onde pisou, uma espécie de exercício literário somado às arbitrariedades ou falhas humanas no sistema. “Sempre gostei de escrever de maneira simples, inclusive sentenças proferidas, para que todos possam entender. Na esfera criminal, a maioria dos apenados é de pessoas simples, com pouca escolaridade.”

Admite, inclusive, ter cometido um equívoco que pode ter mudado as vidas de inúmeros presidiários. “Algumas decisões que achei corretas em dados momentos, depois trouxeram consequências graves e inesperadas. Se soubesse o futuro, possivelmente teria proferido outras. Muitas ainda me doem”, relembra. Juiz de execução, explica ele, trata da vida, seja de réus, seja de vítimas. Qualquer decisão é sempre um enorme dilema, pois não existe uma única resposta, exata e precisa, para todas as dúvidas. Conta que jamais liberou ou condenou alguém sem antes olhar nos seus olhos, frente a frente. Daí cabe ao juiz avaliar com sensibilidade caso a caso. “No direito penal, a execução das sentenças não funciona à base do copiar, cortar e colar. É um trabalho artesanal. A única coisa certa é que o sistema não é justo.”

(FOTO: ARQUIVO PESSOAL)

Uma de suas histórias, “A Pequena e os R$ 2,65”, escancara as mazelas e os erros de um sistema desumano, capaz de transformar gente comum em bandido. “Decerto, foi por causa da estatura que deram o apelido de ‘Pequena’”, descreve o magistrado em sua crônica. Detida e condenada por fazer compras com cheque roubado, Brzuska optou por deixá-la, preventivamente, em um presídio masculino. Embora a Constituição determine que mulheres devam permanecer detidas em locais específicos, não é esta a realidade em centenas de estabelecimentos prisionais.

“Pequena” ficou detida em um “puxadinho, em uma sala improvisada.” Longe da família, sem receber visitas, quando estava menstruada não tinha dinheiro para comprar absorvente. Como esse produto não existe em prisão masculina, a forma que ela encontrou foi negociar com os presos. Eles compravam absorvente em troca de ela esconder drogas nos dias de revista. Tudo funcionou bem até os agentes descobrirem o esconderijo sob seu colchão. “Pequena” foi condenada por “tráfico de drogas”, com pena agravada por reincidência e pelo fato de estar “traficando dentro de estabelecimento prisional”. Passados alguns anos, ele a reencontrou em um presídio feminino cumprindo pena por tráfico de drogas. No texto, Brzuska confessa: “Sempre penso que, se não a tivesse deixado presa por estelionato, jamais ela teria virado ‘traficante’”.

Injustiças também podem ser corrigidas. É o caso de “O Bandido Gumercindo”, acusado de assalto à mão armada com o comparsa Jaramilton, em Santo Ângelo, a 360 quilômetros da capital gaúcha. Jaramilton foi preso, cumpriu pena, enquanto Gumercindo fugiu, foi julgado e condenado à revelia. Passados muitos anos, acabou detido em Porto Alegre quando trabalhava como vendedor. Nada devia à Justiça, se defendeu. “Nunca estive em Santo Ângelo”, garantiu. Em vão. Levado ao Presídio Central, permaneceu vários dias a declarar sua inocência. Por “incomodar” os demais presos, foi transferido para Santo Ângelo. A história se repete. Gumercindo continua a se dizer inocente. Passou a se autoflagelar. O diretor da penitenciária resolveu consultar o juiz e contar a história. “Traga ele aqui”, determinou o juiz. Frente a frente, o magistrado perguntou quem era Jaramilton, seu comparsa. “Nunca vi na vida, doutor. Não sei quem é essa pessoa”, insistiu o preso. Nessa época, Jaramilton era adulto, morava em uma cidade próxima e nunca mais se envolveu com criminalidade. “Vão lá, localizem o Jaramilton e o tragam agora”, ordenou. Gumercindo foi colocado em um canto, no fundo da sala, onde permaneceu sentado.

“Gumercindo aprendeu que, para ser preso, basta estar vivo”, anota o juiz

Assustado, sem entender os motivos da coerção, o “comparsa” Jaramilton apresentou-se. O juiz o interrogou sobre o roubo cometido há anos e pergunta quem estava com ele na ocasião. “Era o Gumercindo. Eu e ele fizemos o assalto”, confirmou. “E quem é aquela pessoa sentada no fundo da sala?” Após olhar atentamente, o recém-chegado responde: “Não sei quem é, nunca vi na vida”. O juiz insiste. Pede que observe seu rosto e pergunta se não é Gumercindo. “Não, doutor, o Gumercindo não tem nada a ver com esse cara. Não é ele.”

Brzuska descobriu então que, anos atrás, Gumercindo havia sido assaltado e seus documentos levados pelos bandidos. Desde então, um dos meliantes passou a cometer crimes com a identidade falsa, ou seja, de Gumercindo. Havia enganado até Jaramilton. Ele, de fato, jamais estivera em Santo Ângelo. Pagou por um crime que não cometera. O juiz o mandou para casa e o processo foi arquivado. “Gumercindo aprendeu que, para ser preso, basta estar vivo”, anotou o magistrado em sua crônica.

Até em ambientes nos quais a vio­lência predomina, um pequeno gesto de afe­tuosidade pode ser libertador. Na visita de rotina a um presídio, sempre cercado por detentos que reclamavam por seus direitos, surge “Leonel de Tal”, trazendo em mãos uma guia de execução. “Olha aí, ‘dotô’, 27 anos ‘pagando’ cadeia. Minha condicional tá vencida e ainda tô preso.” O juiz pediu que aguardasse e prometeu conversar mais tarde. Na hora marcada, o detento apareceu e trazia um cachorro no colo. “O bichinho estava todo dengoso, orgulhoso de seu dono. Numa faceirice que só e bem cuidado. Morava na cela, com Leonel, e tinha até uma correntinha de enfeite no pescoço”, anotou Brzuska em sua crônica “O Cachorrinho do Leonel”.

Melhor amigo. O cachorro serviu de “testemunha” a Leonel (foto: arquivo pessoal)

O juiz ouviu o relato do preso, condenado por assalto a banco, fez perguntas e prometeu verificar o caso. Antes de sair, perguntou se podia tirar uma foto de ambos, Leonel e o cachorro. Quando retornou ao fórum, encaminhou ao colega responsável pelo processo um e-mail com o retrato anexado. Contou o que havia se passado e deu seu parecer. Justificou que, se Leonel, mesmo depois de 27 anos na cadeia, ainda conseguia cuidar e tratar de um cachorro “desse jeito” é porque “alguma coisa boa no coração ele há de ter, portanto, talvez mereça retornar à sociedade em liberdade condicional”. A fotografia, anexada ao processo, surtiu efeito. O colega concedeu a condicional, “Leonel se qualificou, conseguiu emprego, trabalhou com carteira assinada, constituiu família e nunca mais voltou ao crime”.

Os relatos de Brzuska mostram que, mesmo nas piores situações, o ser humano é capaz de reescrever sua própria história, mesmo quando a esperança parece ter morrido.

Publicado na edição nº 1155 de CartaCapital, em 29 de março de 2021.

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