Sociedade

Jornadas longas e salários baixos: a vida dos funcionários do McDonald’s

A empresa, que se orgulha de ser uma das que mais empregada jovens do Brasil, acumula denúncias e condenações por violações trabalhistas

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por Victor Matioli

Um dia depois de completar 14 anos, Luara Nascimento recebeu uma ligação inesperada. Do outro lado da linha, um representante do setor de Recursos Humanos do McDonald’s perguntava se ela gostaria de trabalhar em uma das lojas da rede.

Uma semana antes, Luara havia deixado uma cópia de seu currículo na unidade do Shopping Aricanduva, na zona leste da cidade de São Paulo. Sua mãe estava desempregada e ela precisava ajudar nas despesas da casa. “Então eu fiquei muito feliz de ter sido selecionada”, lembra a jovem, agora com 19 anos, em entrevista ao Joio.

Depois de uma dinâmica de grupo, uma prova rápida e um exame admissional, Luara foi contratada para ser atendente em uma loja do McDonald’s na Avenida Paes de Barros — uma das principais da Mooca, outro bairro da Zona Leste. Como tinha apenas 14 anos, foi admitida como jovem aprendiz. Empresas médias e grandes devem reservar entre 5% e 15% dos postos de trabalho para essa modalidade.

 

Luara era, na prática, uma funcionária como qualquer outra: “Limpei chão, banheiro, fiz cobrança, fiz lanche, atendi cliente… fiz muita coisa ali.” A única diferença é que entrava uma hora mais tarde e saía uma hora mais cedo do que os colegas. “Eu entrava às 15h e saía às 20h30, com uma pausa de 30 minutos”, explica. Pela jornada diária de seis horas, cumpridas de segunda a sábado, Luara recebia R$ 570 em duas parcelas: uma no dia 5, outra no dia 20.

Em 2016, quando deixou a empresa, o salário mínimo era de R$ 880. Receber abaixo do mínimo não era uma exclusividade dela. Muito antes da reforma trabalhista de 2017, a empresa já adotava o expediente da jornada intermitente – de forma ilegal.

“McDonald’s é um lugar que sempre está cheio, nunca falta serviço”, lembra, sobre as tardes passadas na loja da Mooca. A preparação dos lanches e o atendimento aos clientes só eram interrompidos por rodadas de limpeza.

De acordo com o MPT, a jornada móvel era o principal mecanismo usado pela empresa para reduzir os pagamentos

Apesar do trabalho duro e do salário que considerava “pouquíssimo” para ajudar em casa, Luara se irrita com o estigma de que trabalhar no McDonald’s é uma “escravidão” — é comum encontrar funcionários da rede que, em tom de piada, se autodeclaram “McEscravos”. Ela entende que recebeu uma oportunidade da empresa quando mais precisava — e é grata por isso.

Não é tão difícil encontrar essa mesma gratidão em outros relatos publicados na internet.

Principalmente em regiões periféricas, onde o trabalho é escasso e a falta de acolhimento pelo mercado é crônica, os empregos de baixa qualidade oferecidos pelo McDonald’s se apresentam na forma de oportunidades únicas, irrecusáveis. A corporação americana se orgulha de ser uma das maiores empregadoras de jovens do
Brasil. Em entrevista à revista Pequenas Empresas Grandes Negócios, o presidente da operação brasileira do McDonald’s, Paulo Camargo, afirmou que 90% dos cerca de 50 mil funcionários no país têm entre 18 e 25 anos. “É uma tremenda responsabilidade. Muitas vezes nossos gerentes acabam fazendo uma função social, quase paternal ou maternal, porque alguma família não ensinou um desses garotos a escovar os dentes.”

Os garotos não buscam nas lanchonetes lições de higiene ou de civilidade, mas alguma independência financeira e, principalmente, dignidade. Mas, na maior parte das vezes, eles deixam a empresa sem as duas coisas.

Entre os 16 diretores executivos da empresa, só há uma mulher e, novamente, nenhuma pessoa negra

Padrão McDonald’s

Não existem grandes diferenças entre as quase 1.100 lanchonetes do McDonald’s espalhadas pelo Brasil. A decoração, o atendimento, a montagem dos lanches e a disposição do pedido na bandeja: tudo segue um padrão rigoroso imposto pela rede.

Até a comunicação é padronizada. Nas lojas, a frase mais falada é “ok, obrigado”. É assim que os funcionários devem responder a uma ordem do gerente, por exemplo. Mas não só. “Como existe muita provocação, muita discriminação por parte dos clientes, nós somos orientados a responder tudo com ‘ok, obrigado’”, explica Luara Nascimento. “É uma forma de encerrar a discussão.”

Mas há mais um padrão nas lanchonetes da maior rede de fast-food do mundo: a violação de direitos trabalhistas dos funcionários. “O gerente pedia para registrarmos nossa saída no leitor biométrico e mandava voltar para ‘ajudar mais um pouquinho’”, lembra Marina*, de 19 anos. A jovem moradora de Cajamar, cidade da Região Metropolitana de São Paulo, disse ao Joio que frequentemente excedia a jornada de trabalho em duas ou três horas. “Teoricamente eu saía às 19h, mas era comum ficar até depois das 21h a pedido do gerente, que pressionava a gente.” Ela trabalhou pouco menos de um ano para o McDonald’s, mas nunca recebeu horas extras.

Gustavo*, de 22 anos, trabalhou entre 2016 e 2017 em uma unidade do McDonald’s em Praia Grande, na Baixada Santista. “Em nenhum mês eu ultrapassei o valor do salário mínimo da época”, conta. Ele recebia R$ 5,70 por cada hora trabalhada, mas, por conta da jornada móvel usada pela empresa, nunca recebeu um salário digno.

Em 2019, a Arcos Dourados — empresa que detém os direitos de operação do McDonald’s na América Latina — foi multada em R$ 7 milhões por descumprir um acordo com o Ministério Público do Trabalho (MPT) e pagar salários abaixo do mínimo legal aos funcionários. O acordo havia sido firmado seis anos antes, em 2013, quando a empresa
recebeu uma primeira multa de R$ 7,5 milhões e se comprometeu a não repetir os malfeitos.

Em seu site institucional brasileiro, o McDonald’s se mostra comprometido com a diversidade e a inclusão

De acordo com o MPT, o principal mecanismo usado pela empresa para reduzir os pagamentos era justamente a jornada móvel que corroía os salários de Gustavo*. Nesse regime, os trabalhadores não são informados da escala de trabalho com antecedência e nunca sabem quantas horas vão trabalhar por mês. Pelo mesmo motivo — e também em
2019 — a Arcos Dourados foi condenada a pagar cerca de R$ 4 milhões a 1.026 ex-funcionários de Goiás.

Os salários desproporcionalmente baixos não são uma exclusividade brasileira. Depois da mobilização de 38 mil trabalhadores de lanchonetes da Califórnia, no oeste dos Estados Unidos, a matriz americana da corporação foi multada em US$ 26 milhões (cerca de R$ 100 milhões, na época) por pagar menos que o mínimo legal aos funcionários.

As violações de normas trabalhistas parecem fazer parte do modelo de negócios da empresa, o que a transforma em figurinha carimbada nas audiências da Justiça do Trabalho.

Em novembro de 2015, o juiz Igor Cardoso Garcia, da 7ª Vara do Trabalho de Santos, condenou a Arcos Dourados a pagar R$ 500 mil em indenizações por dumping social. O magistrado considerou que a empresa usava as recorrentes violações trabalhistas para criar uma vantagem competitiva sobre os concorrentes.

A rotina sob os Arcos

A carioca Andreza Hellen começou a trabalhar no McDonald’s assim que completou 17 anos. Hoje, aos 23, lembra com carinho das amizades que criou na lanchonete do Barra Shopping, na zona oeste do Rio. Ela conciliava as longas jornadas noturnas com o terceiro ano do ensino médio, numa rotina cansativa. “Como eu morava longe do trabalho e longe da escola, às vezes eu faltava na aula para trabalhar”, confessa.

Na primeira semana de trabalho, enquanto ainda recebia treinamento, Andreza ficou responsável pela “torre” — equipamento onde são preparadas as bebidas do restaurante.

Um dia, acometida por uma forte cólica menstrual, precisou desacelerar o ritmo de produção. “Eu disse pro gerente que estava fazendo as coisas mais devagar porque estava com muita dor”, revive. O grito que ouviu em resposta foi desconcertante: “Você tá com cólica, minha filha. Cólica não é doença e você não tá aleijada pra não conseguir fazer as coisas.”

“Quando eu olhei pra trás, tinha uma fila enorme de clientes me olhando”, lembra a jovem. “Estavam todos de boca aberta, ninguém acreditou que ele tinha gritado daquela forma.” Ela não se arrepende de ter trabalhado no McDonald’s, mas reconhece que o salário de R$ 624 “era muito baixo” e não condizia com a carga horária que ela cumpria. “Mas foi a oportunidade que apareceu.”

Gustavo*, que trabalhou em uma unidade de Praia Grande, conta uma história parecida. “A gerente chamava a atenção e humilhava os funcionários na frente de todo mundo”, explica. “Ela chamava na sala dela pra conversar, dava bronca de forma que as pessoas ficavam visivelmente constrangidas.”

Ele também foi constrangido. Em uma tarde de 2017, enquanto trabalhava no caixa, Gustavo acionou o gerente da loja para alterar um pedido — nesses casos, é necessário usar um cartão especial que só os gerentes têm. “Ele simplesmente gritou comigo na frente de todo mundo por ter solicitado esse cancelamento”, conta indignado. “Foi tão constrangedor que uma cliente gritou com ele pedindo pra me tratar como ser humano, que aquilo não era
necessário.”

O comportamento hostil dos gerentes de loja foi confirmado por quase todos os ex-funcionários ouvidos pela reportagem do Joio. Aparentemente, esse é mais um padrão da empresa.

Em outubro de 2020, o Tribunal Superior do Trabalho condenou a Arcos Dourados a indenizar em R$ 20 mil uma ex-funcionária vítima de assédio moral. A mulher, que trabalhou em uma loja da rede em Varginha, no estado de Minas Gerais, denunciou o gerente da unidade pelos xingamentos constantes que sofria. Segundo ela, o superior
costumava gritar frases como “bando de porcos que não sabem trabalhar”. A ex-funcionária disse ainda que o gerente dirigia comentários maliciosos a ela e forçava contatos físicos.

Em seu site institucional brasileiro, o McDonald’s se mostra comprometido com a diversidade e a inclusão social. “Aqui, não admitimos discriminação e exigimos o mesmo respeito profissional para todos os nossos funcionários, sem qualquer distinção de sexo, idade, raça, opção sexual (sic), religião ou aparência física”, lê-se numas das abas.

Mobilização de sindicatos é uma das principais fontes de derrotas da empresa nos tribunais trabalhistas do Brasil.

Nos níveis hierárquicos mais altos da empresa, contudo, a diversidade não aparece. Entre os 11 membros do Conselho de Administração da Arcos Dourados, há apenas duas mulheres. A idade média é de 59 anos e não há nenhum negro. Entre os 16 diretores executivos da empresa, só há uma mulher e, novamente, nenhuma pessoa negra.

No início deste ano, a matriz americana da corporação anunciou novas metas de diversidade para os cargos executivos. O objetivo declarado é atingir uma paridade de gênero nesses postos até 2030.

“Fator de risco”

Na madrugada de 16 de dezembro de 2019, o casal de namorados Carlos Campos, de 18 anos, e Alexandra Porras, de 19, terminava a limpeza de uma lanchonete do McDonald’s no distrito de Pueblo Libre, em Lima, capital do Peru. Os jovens, recém-formados no ensino médio, trabalhavam há cerca de seis meses no turno da noite.

Enquanto limpava a máquina de refrigerantes da loja, Alexandra levou um choque. Carlos correu para ajudá-la e também acabou atingido pela descarga elétrica. Os dois morreram.

À imprensa, a Arcos Dourados afirmou que lamentava o ocorrido e que investigaria o incidente. Aos acionistas da empresa, disse algo diferente: “Este acidente está sendo investigado pelas autoridades peruanas e, embora não esperemos um impacto material deste evento, quaisquer futuros acidentes de trabalho podem ter um efeito adverso relevante sobre nossos negócios, condição financeira e resultados operacionais.”

A frase, que parece ter sido escrita por um robô ou alguém que se desconectou completamente da própria humanidade, está no Relatório Anual de 2019 da Arcos Dourados. Nesse tipo de documento, a empresa se dirige aos acionistas com bastante franqueza para atualizá-los sobre o estado de coisas da organização.

No meio do documento de 297 páginas, o posicionamento duro sobre a morte de um casal de jovens funcionários peruanos se camufla em meio a números e termos técnicos. Mas parece adequado para uma empresa que cita “quaisquer aumentos nos salários mínimos” como um “fator de risco” com potencial para prejudicar os negócios.

Em outro relatório apresentado aos investidores, a Arcos Dourados explica uma particularidade irritante da operação brasileira: “Embora tenhamos sindicatos em alguns de nossos mercados mais importantes, incluindo Brasil, Argentina e México, os sindicatos só têm um papel ativo em nossos restaurantes brasileiros.” A mobilização de sindicatos é uma das principais fontes de derrotas da empresa nos tribunais trabalhistas do Brasil.

Mas a aversão à sindicalização também não é uma exclusividade nossa. Em uma reportagem publicada em fevereiro de 2020 no jornal The New York Times, a jornalista Emily Bazelon mostra como o McDonald’s se organizou para perseguir funcionários pró-sindicatos. O texto conta a história de Sean Caldwell, um veterano do exército de 35 anos que trabalhava há dois como zelador em uma lanchonete da corporação na Filadélfia, Nordeste dos EUA.

Caldwell participou de um comício que exigia um pagamento mínimo de US$ 15 por hora aos funcionários e o direito de se sindicalizar. Uma semana depois, foi demitido. Na reportagem, Bazelon mostra que a McDonald’s Corporation não só ofereceu assistência jurídica para que os franqueados resistissem à organização dos trabalhadores como fez
circular listas com os nomes dos empregados que apoiavam a sindicalização para que fossem demitidos.

*

Procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa do Ministério Público do Trabalho em São Paulo não deu detalhes sobre as investigações contra o McDonald’s, mas afirmou que o órgão atualmente analisa casos de assédio moral, jornada excessiva e salário menor que o combinado em convenção coletiva com sindicatos.

A assessoria de imprensa da Arcos Dourados também foi procurada para comentar os casos expostos nesta reportagem, mas preferiu não se pronunciar.

* Os nomes foram alterados para preservar a identidade das fontes.

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