Sociedade

Jael, a congolesa que insiste em seguir em frente

Ela foi torturada no Congo, fugiu, perdeu um filho, foi enganada e abre um sorriso largo ao falar do Brasil

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 A congolesa Jael Asifiwe estava há cerca de um mês no porão do navio que a transportava clandestinamente do Quênia ao Canadá quando entregou o corpo de seu bebê de sete meses ao homem responsável por tomar conta dos imigrantes. Foi assim, sem velório, sem enterro, que ela se despediu do seu quarto filho.

Em novembro de 2014, depois de quase dois anos de fuga, Fiwe embarcara num navio de carga, sonhando com uma vida de paz. Fugia da guerra que há 20 anos assombra a República Democrática do Congo,  cujo presidente, Joseph Kabila, no poder desde 2001 e ignorando a constituição do país, vinha fazendo sucessivas manobras para adiar as eleições com o intuito de permanecer no cargo. Em janeiro deste ano, após uma longa negociação entre governo e oposição, Kabila concordou em marcar eleições para dezembro de 2017, um ano depois do final de seu mandato.

A guerra da qual foge Asifiwe tem suas raízes na briga de diversas etnias pelo poder da RD do Congo. Um conflito que se tornou o mais mortífero e sangrento desde a Segunda Guerra Mundial. Em 20 anos, seis milhões de pessoas foram mortas em decorrência de embates, doenças e fome. A disputa vai muito além do poder político. Por trás da oposição ao governo e dos conflitos étnicos está também o controle sobre as riquezas naturais do país, entre as quais se destacam ouro, cobre e a maior reserva mundial de coltan, usado em aparelhos de celular e tablets.

A situação de Asifiwe é peculiar. Ao contrário de milhares de congoleses que deixaram o país, ela não fazia oposição ao governo. Seu marido, John Eluala, era oficial do exército de Kabila,  patente que garantia a ela e aos três filhos uma vida confortável, casa ampla, com três quartos e o conforto de levar os três filhos a pé para a escola. Formada em secretariado, Fiwe trabalhava no setor de publicidade de uma organização não governamental ligada à área de saúde. Desenvolvia programas de divulgação para motivar a população a adotar hábitos saudáveis.

Emboscada

Sua família morava em Goma, a 2,7 mil quilômetros a oeste da capital, Kinshasa. Em 2012, a cidade foi tomada pelos rebeldes. Nessa época, seu marido, então com 37 anos, era capitão e liderava uma das tropas que tentava retomar a cidade. Durante uma incursão contra os opositores, ele e seus soldados caíram numa emboscada. Vários dos homens conseguiram escapar, mas Eluala não voltou para casa. Fiwe tinha 25 anos e três filhos. Seus pais já haviam morrido, a mãe, aos 48 anos de hipertensão; o pai, aos 52 em decorrência de diabetes. Suas duas irmãs moravam em outra cidade, que ela não revela.

Mesmo após seu desaparecimento, o exército congolês continuou abrigando a família do capitão. Ao final do terceiro mês, a situação mudou. Entre os superiores do militar, surgiu a suspeita de que ele havia facilitado a entrada dos rebeldes na cidade. De oficial respeitado, passou a ser visto como traidor. “Eles não entendiam por que um capitão não voltou para casa, para eles só podia ser traição”, conta Asifiwe.

Alertada da desconfiança por soldados da antiga tropa do marido, ela fugiu para Beni, cidade a 360 quilômetros de distância, no extremo norte do Parque Nacional de Virunga, cuja reserva de petróleo também é alvo de disputa no país. O exército não desistiu, no entanto, de encontrar seu marido e partiu a sua procura até finalmente chegar a Beni, onde Fiwe, havia poucas semanas, vivia escondida numa tenda com os filhos.

“Foram cerca de sete homens que entraram batendo e atirando em todo mundo”, relata.  Eles perguntaram onde estava meu marido, mas eu não sabia. Então me bateram e me violentaram na frente dos meu filhos”, revela com um olhar de resignação de quem escapou dos limites mais sórdidos que vida pode imprimir a um ser humano. O estupro foi apenas o começo de mais dois anos de suplício.

Teimosia

Asifiwe teimou em sobreviver. Ligou para a irmã e lhe confiou os três filhos. Sabia que os homens de Kabila não iriam deixá-la em paz enquanto não soubessem do paradeiro do marido – de quem ela nunca mais teve notícias. A família dele, conformada com o desaparecimento, já o deu como morto e fez até seu velório.

De Beni, ela fugiu para Uganda, onde ficou no campo de refugiados de Kampala. Ali, a vida, com todas as dificuldades, corria mais tranquila. Nesse período de aparente calmaria o exército de Kabila novamente apareceu em sua vida. Ela descobriu-se grávida. Não fazia ideia de quem era o pai. Sabia apenas que era uma consequência do estupro coletivo que sofreu.

Foi a gota d’água para Asifiwe decidir deixar a África. Determinada a ir para o Canadá, onde poderia se comunicar bem por conta o francês, idioma oficial da RD do Congo, ela partiu com seu bebê, então com seis meses, para o Quênia. Lá buscaria um alguém que lhe ajudasse a embarcar clandestinamente num navio cargueiro. “Funciona de boca em boca, você vai perguntando até que aparece alguém que leva você no navio”, afirma.

Segundo ela, são os funcionários da empresa de cabotagem que colocam os emigrantes na embarcação. É só ter 500 dólares e escolher o destino. Mais adiante ela veria que não é bem assim. Com ela foram outras 16 pessoas, sendo 4 mulheres. Dormiam todos no mesmo espaço em colchões distribuídos no chão. Comiam pão, biscoito e sardinhas e durante os dois meses que durou sua jornada ela não viu a luz do sol. Saiam do compartimento apenas à noite para usar o banheiro e tomar banho. Seu bebê, então com sete meses, adoeceu, teve tosse, febre. “No navio, o único remédio era paracetamol”, lamenta. A criança não resistiu e morreu. “Apesar de eu não saber quem era o pai, aquele bebê era meu filho”, diz. O que foi feito do corpo de seu quarto filho ela não sabe ou não diz. Conta apenas que o entregou para o “homem que cuidava das pessoas no navio.”

Dois meses depois de embarcar no Quênia, dois anos depois de ser vítima de um estupro coletivo do qual engravidou de uma criança que morreria enquanto tentava se salvar, Asifiwe finalmente pisou em terra firme. O porto onde desembarcou em 20 de março de 2013 não era no Canadá. Ela estava no Recife, no hemisfério oposto ao destino planejado. “A única coisa que o homem que cuidava da gente disse foi “procurem a polícia”, lembra.

“Eu não entendia nada, nada, as pessoas falavam e eu não entendia”, conta. Asifiwe foi salva por um congolês que estava no porto e a encaminhou à Polícia Federal do Recife, que a levou para uma missão católica. A cidade não lhe ofereceu oportunidades e, depois de quatro meses, com a ajuda da organização religiosa, ela mudou-se para São Paulo, para casa de uma também congolesa. Lá ficou por alguns meses, mas viu-se obrigada a sair ao sofrer assédio sexual. “O dono da casa dizia que se eu ficasse com ele, não precisaria pagar aluguel”. Mais uma vez ela mudou-se, agora para a casa de uma amiga que conheceu na Galeria do Rock. Havia acabado de arrumar um emprego de cuidadora de idosos, na casa de uma família que morava na Avenida Paulista.

A vida parecia começar a se ajeitar, mas novamente não seria bem assim. Como muitos imigrantes africanos, Asifiwe conta ter sido explorada e maltratada pelos patrões. Segundo relata, eles passaram a exigir que dormisse no trabalho todos os dias, quando o combinado seriam duas vezes por semana. Pediram, ainda, que ela trabalhasse sábado o dia inteiro, quando o combinado era até o meio-dia. E sem pagamento de horas-extras.

Asifiwe suportou até que os gritos e xingamentos começaram. Após nove meses de trabalho, pediu demissão. Ainda está desempregada, mora com mais duas amigas em um cômodo no primeiro andar de um sobrado em Artur Alvim, zona leste de São Paulo. O local não chega a 20 metros quadrados e o banheiro é compartilhado com um casal que vive no mesmo andar. Asfiwe ainda sonha. Quer trazer os filhos para o Brasil. Sorridente, diz que está feliz aqui, porque tem oportunidade de seguir em frente.

* Colaborou Beatriz Drague Ramos

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