Sociedade

Invasão da polícia no Carandiru deixou 111 detentos mortos

Raros são os casos de atos de selvageria e brutalidade comparáveis aos praticados naquela, concluiu a Comissão Interamericana de Direitos Humanos

O antigo Carandiru, palco do massacre cometido pela Polícia Militar de São Paulo. Foto: Agência Brasil
Apoie Siga-nos no

Elaine Patricia Cruz


Repórter da Agência Brasil

 


São Paulo – Na tarde de 2 de outubro de 1992, por volta das 14h, a dois dias das eleições municipais, dois detentos brigam no Pavilhão 9, na Casa de Detenção de São Paulo, um complexo penitenciário construído nos anos 20 no bairro do Carandiru, na zona norte de São Paulo.

Foi o estopim de uma tragédia que deixou 111 detentos mortos, resultado da invasão da Polícia Militar (PM) que aconteceria pouco depois, e que ficou conhecida como o Massacre do Carandiru.

O complexo era formado por sete pavilhões, cada um deles com cinco andares. Na época, 7.257 presos viviam no Carandiru (como afinal ficou conhecida a Casa de Detenção), 2.706 deles só no Pavilhão 9, onde estavam encarcerados os réus primários, aqueles que cumpriam sua primeira pena de prisão. Em 2002, teve início o processo de demolição do complexo penitenciário. Hoje o local abriga o Parque da Juventude.

A briga se generaliza, começa uma confusão e os funcionários do complexo tentam acalmar os ânimos dos detentos e recolhê-los às celas.

“As pessoas se amotinaram, se aglomeraram, os agentes penitenciários ficaram em pânico, evadiram-se do pavilhão e começou aquela gritaria de que havia se iniciado uma rebelião”, contou à Agência Brasil o pastor evangélico Sidney Francisco Sales, 45 anos, ex-detento do Pavilhão 9 e que atualmente cuida de três abrigos.

Sales estava em sua cela, no quinto andar, quando os policiais chegaram ao Carandiru para conter a rebelião. Uma tentativa de negociação com os detentos falhou.

“Passava das 3h da tarde quando a PM invadiu o Pavilhão 9. O ataque foi desfechado com precisão militar: rápido e letal. A violência da ação não deu chance para defesa”, narra o médico Drauzio Varela em seu livro Estação Carandiru.

Drauzio fazia um trabalho de prevenção à aids no complexo e conta ter escrito o livro baseado nos relatos dos presos. Cerca de meia hora depois da entrada da PM, “as metralhadoras silenciaram”, contou o médico. Nesse dia, 111 detentos morreram, 84 deles presos ainda não condenados.

Em 2000, um documento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), após petição impetrada pelas organizações Human Rights Watch Americas, Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (Cejil) e Comissão Teotônio Vilela, considerou a ação policial no Carandiru “um massacre”.

No documento – o Relatório 34/00 – a CIDH relata os acontecimentos no Carandiru. “Ante o motim, os guardas (agentes penitenciários) optaram por retirar-se do estabelecimento, e o diretor da prisão pediu a ajuda da Polícia Militar”, diz a comissão.

“Segundo dados que os peticionários apresentaram e o Estado [brasileiro] não contestou, os juízes supervisores foram chamados pelo diretor da prisão tão logo se deu o alarme, às 14h15, ao mesmo tempo em que se convocaram as autoridades policias. Às 14h30, chegou o comandante Ubiratan Guimarães, chefe da Polícia Metropolitana de São Paulo, com três tropas de assalto, inclusive cães, pelotões de choque e o Batalhão Rota, especializado em combates de grande violência. O secretário de Segurança transferiu nesse momento a autoridade sobre a prisão para o comandante Guimarães”, continua o texto do relatório.

A CIDH relata ainda que o então governador de São Paulo, Luiz Antonio Fleury Filho, “encontrava-se nesse momento fora da cidade e aparentemente só foi informado da rebelião às 17h35”.

De acordo com o documento, dois juízes da Vara de Execuções Penais e o juiz da Corregedoria dos Presídios também estiveram no local, mas, quando lá chegaram, foram dissuadidos pela Polícia Militar de entrar no Pavilhão 9, já que os presos estariam armados. Por volta das 16h, os policiais ocuparam o pavilhão.

“O próprio governador Fleury declarou que, pelo fato de alguns detidos terem atacado a polícia, e especialmente depois que o comandante Guimarães foi ferido em consequência da explosão de um tubo de televisão, as forças encarregadas de sufocar o levante ficaram fora de controle”, relata o documento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

“Às 17 horas, aproximadamente, os juízes foram informados de que o motim terminara”, diz o documento. Nenhum policial morreu na ação. Para a CIDH, as mortes dos detentos não decorreram de ações de legítima defesa nem para desarmá-los, “uma vez que as armas de que dispunham, de fabricação caseira, haviam sido dispostas no pátio ao entrarem os policiais”.

“Quando cheguei na borda do primeiro pavimento, vi uma cena dantesca, algo que nunca tinha visto na minha vida. Um monte de cadáveres empilhados, um por cima do outro, todos completamente destroçados, com buracos de balas aos montes. Comecei a contar os cadáveres. Pude contar 90 cadáveres. Contei errado naquele dia. Na realidade, tinham 89”, relatou à Agência Brasil Osvaldo Negrini Neto, que era perito do Instituto de Criminalística (IC) à época. Pouco depois, ele soube que outros cadáveres já haviam sido levados ao Instituto Médico-Legal (IML) naquela mesma noite.

Apesar de saber que o número de mortos excedia 100 pessoas na manhã do dia 3 de outubro, a divulgação só ocorreu após o final das eleições municipais, quando as urnas estavam fechadas, já no final da tarde de domingo (4).

“Na trágica história de massacres de que a comissão tem memória, raros são os casos de atos de selvageria e brutalidade comparáveis aos praticados naquela tarde em Carandiru”, escreveu a CIDH.

 

*Matéria originalmente publicada na Agência Brasil

Elaine Patricia Cruz


Repórter da Agência Brasil

 


São Paulo – Na tarde de 2 de outubro de 1992, por volta das 14h, a dois dias das eleições municipais, dois detentos brigam no Pavilhão 9, na Casa de Detenção de São Paulo, um complexo penitenciário construído nos anos 20 no bairro do Carandiru, na zona norte de São Paulo.

Foi o estopim de uma tragédia que deixou 111 detentos mortos, resultado da invasão da Polícia Militar (PM) que aconteceria pouco depois, e que ficou conhecida como o Massacre do Carandiru.

O complexo era formado por sete pavilhões, cada um deles com cinco andares. Na época, 7.257 presos viviam no Carandiru (como afinal ficou conhecida a Casa de Detenção), 2.706 deles só no Pavilhão 9, onde estavam encarcerados os réus primários, aqueles que cumpriam sua primeira pena de prisão. Em 2002, teve início o processo de demolição do complexo penitenciário. Hoje o local abriga o Parque da Juventude.

A briga se generaliza, começa uma confusão e os funcionários do complexo tentam acalmar os ânimos dos detentos e recolhê-los às celas.

“As pessoas se amotinaram, se aglomeraram, os agentes penitenciários ficaram em pânico, evadiram-se do pavilhão e começou aquela gritaria de que havia se iniciado uma rebelião”, contou à Agência Brasil o pastor evangélico Sidney Francisco Sales, 45 anos, ex-detento do Pavilhão 9 e que atualmente cuida de três abrigos.

Sales estava em sua cela, no quinto andar, quando os policiais chegaram ao Carandiru para conter a rebelião. Uma tentativa de negociação com os detentos falhou.

“Passava das 3h da tarde quando a PM invadiu o Pavilhão 9. O ataque foi desfechado com precisão militar: rápido e letal. A violência da ação não deu chance para defesa”, narra o médico Drauzio Varela em seu livro Estação Carandiru.

Drauzio fazia um trabalho de prevenção à aids no complexo e conta ter escrito o livro baseado nos relatos dos presos. Cerca de meia hora depois da entrada da PM, “as metralhadoras silenciaram”, contou o médico. Nesse dia, 111 detentos morreram, 84 deles presos ainda não condenados.

Em 2000, um documento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), após petição impetrada pelas organizações Human Rights Watch Americas, Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (Cejil) e Comissão Teotônio Vilela, considerou a ação policial no Carandiru “um massacre”.

No documento – o Relatório 34/00 – a CIDH relata os acontecimentos no Carandiru. “Ante o motim, os guardas (agentes penitenciários) optaram por retirar-se do estabelecimento, e o diretor da prisão pediu a ajuda da Polícia Militar”, diz a comissão.

“Segundo dados que os peticionários apresentaram e o Estado [brasileiro] não contestou, os juízes supervisores foram chamados pelo diretor da prisão tão logo se deu o alarme, às 14h15, ao mesmo tempo em que se convocaram as autoridades policias. Às 14h30, chegou o comandante Ubiratan Guimarães, chefe da Polícia Metropolitana de São Paulo, com três tropas de assalto, inclusive cães, pelotões de choque e o Batalhão Rota, especializado em combates de grande violência. O secretário de Segurança transferiu nesse momento a autoridade sobre a prisão para o comandante Guimarães”, continua o texto do relatório.

A CIDH relata ainda que o então governador de São Paulo, Luiz Antonio Fleury Filho, “encontrava-se nesse momento fora da cidade e aparentemente só foi informado da rebelião às 17h35”.

De acordo com o documento, dois juízes da Vara de Execuções Penais e o juiz da Corregedoria dos Presídios também estiveram no local, mas, quando lá chegaram, foram dissuadidos pela Polícia Militar de entrar no Pavilhão 9, já que os presos estariam armados. Por volta das 16h, os policiais ocuparam o pavilhão.

“O próprio governador Fleury declarou que, pelo fato de alguns detidos terem atacado a polícia, e especialmente depois que o comandante Guimarães foi ferido em consequência da explosão de um tubo de televisão, as forças encarregadas de sufocar o levante ficaram fora de controle”, relata o documento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

“Às 17 horas, aproximadamente, os juízes foram informados de que o motim terminara”, diz o documento. Nenhum policial morreu na ação. Para a CIDH, as mortes dos detentos não decorreram de ações de legítima defesa nem para desarmá-los, “uma vez que as armas de que dispunham, de fabricação caseira, haviam sido dispostas no pátio ao entrarem os policiais”.

“Quando cheguei na borda do primeiro pavimento, vi uma cena dantesca, algo que nunca tinha visto na minha vida. Um monte de cadáveres empilhados, um por cima do outro, todos completamente destroçados, com buracos de balas aos montes. Comecei a contar os cadáveres. Pude contar 90 cadáveres. Contei errado naquele dia. Na realidade, tinham 89”, relatou à Agência Brasil Osvaldo Negrini Neto, que era perito do Instituto de Criminalística (IC) à época. Pouco depois, ele soube que outros cadáveres já haviam sido levados ao Instituto Médico-Legal (IML) naquela mesma noite.

Apesar de saber que o número de mortos excedia 100 pessoas na manhã do dia 3 de outubro, a divulgação só ocorreu após o final das eleições municipais, quando as urnas estavam fechadas, já no final da tarde de domingo (4).

“Na trágica história de massacres de que a comissão tem memória, raros são os casos de atos de selvageria e brutalidade comparáveis aos praticados naquela tarde em Carandiru”, escreveu a CIDH.

 

*Matéria originalmente publicada na Agência Brasil

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar