O dia ainda não havia clareado quando entrei no elevador. Zarolho de sono, ensaiei os bons dias a um senhor de calça de pijamas e chinelo de dedo. O cumprimento não me foi devolvido, o que àquela hora do dia era a menor das minhas preocupações. Com um meio sorriso constrangido, ainda despenteado e sem disposição para existir, desci em silêncio o elevador até a porta do refeitório onde se lia à entrada: “o café da manhã será servido a partir das 6h00”. Olhei o relógio: 6h01. Olhei de novo para o refeitório e reparei que as portas estavam fechadas.
Do lado de fora, um dos funcionários do hotel, talvez imaginando que eu fosse estrangeiro, gesticulava e explicava, em português pausado e com entonação nas vogais, que o responsável pelo café havia faltado e que teríamos de esperar alguns minutos.
– Ok, sir?, disse ele, sem reparar que o interlocutor também falava em português. Respondi enfatizando todos os meus “erres” de Araraquara. Em vão.
– Thanks, sir.
E foi se explicar para os estrangeiros que chegavam à fila, como quem acaba de ser alçado ao posto de embaixador de uma nação sem café.
-No hay café. Sorry. Please, esperar… um… pouco.
Voltei para a fila e ouvi o grandalhão de pijamas resmungar:
– Esse é o país que quer sediar a Copa.
O bordão era tão original quanto plausível: ao nosso redor, um corredor de hotel do centro de São Paulo, dezenas de argentinos se espalhavam e se preparavam para a partida de dali a pouco contra a Suíça, na Arena Corinthians. Diante da cena, até os céticos mais ferrenhos da nossa incapacidade de sediar sequer encontros de vendedores de cachorro quente já se sentiriam constrangidos em repetir a frase, mas o sujeito parecia indisposto a teorias cartesianas. Com cara de “não vai ter Copa”, reagiu:
– Como assim não vai ter café?
O funcionário tratou de explicar:
– Não é que não vai ter. Mas peço a gentileza de o senhor esperar um momento porque vamos demorar alguns minutos até nos organizar. Um colaborador faltou e…
– Mas está escrito que o café seria servido às seis e já são seis horas e dois minutos, berrou.
Os argentinos da fila me olharam, como se me perguntassem: “Vocês são sempre assim?”
– Quero falar com o seu gerente, disse o grandalhão, com o dedo no peito do funcionário que arriscara seu portuinglês comigo.
Enquanto ele se dirigia ao balcão, onde estava o gerente, lembrei que um dia antes havia ficado constrangido ao fazer o check-in no hotel ao lado de uns alemães e uns argentinos. Os alemães passaram imunes, mas os argentinos não conseguiam dar dois passos na fila sem ouvir as variações de uma velha provocação entre homens no mictório: “Neymar é melhor que o Messi”, “Messi pipoqueiro”, “Messi maricas”, “Pelé é maior que Maradona” e por aí vai – uma cena que vi se repetir desde o desembarque na rodoviária, na fila para o metrô.
O último filtro era um hóspede bêbado que fazia reverências aos hermanos no hall do hotel (os apartamentos eram tão apertados que as pessoas desciam até a portaria para encher a lata). O hóspede bêbado gritava para qualquer visitante de camisa azul que aparecesse à sua frente: “Shaqiri”. Ao lado, a esposa o puxava pelo braço, pedia para não amolar, mas ele seguia, rindo da própria provocação: “Shaqiri”. Era o nome da estrela da Suíça, adversário da Argentina nas oitavas.
– Amor, deixa de ser chato. Vamos subir.
– Quero ficar aqui. “Shaqiri”! “Shaqiri”!
E ria.
Os visitantes apenas sorriam, constrangidos. Alguns reagiam à brincadeira. Ao fundo eu conseguia ouvir a voz do Galvão Bueno jogando gasolina na fogueira de uma rivalidade que naquele hotel se transformava em brincadeira de colégio. “Ganhar o jogo é bom, mas ganhar da Argentina é muito melhor, amigo.”
Enfim, faz parte da festa, bola pra frente, pensei. E fui dormir. No dia seguinte, pela manhã, me lembrava da cena sem ter muito o que dizer aos dois argentinos da fila para o café. O sujeito de calça de pijamas tratava de mostrar aos berros o nosso lado hospitaleiro.
– Até que horas vou ter que esperar para tomar meu café?
Eu mentiria se dissesse que o sujeito não parecia o Almeidinha, o personagem fictício inventado pelos meus amigos de faculdade para descrever o brasileiro médio: o sujeito ao mesmo tempo acomodado e à beira de um ataque de nervos, disposto a colocar a culpa em tudo o que não é ele e a sua família para se eximir de qualquer frustração narcísica e poder dormir em paz.
– Senhor, tivemos um contratempo, essas coisas acontecem, disse o gerente, quase no mesmo tom.
– Na minha empresa isso não acontece.
– Que bom, senhor, mas aqui o senhor terá de esperar.
Irritado e bufando, o sujeito engoliu a bronca do gerente e voltou à fila para enfiar o dedo no peito do funcionário. Ajeitava a calça do pijama, que ameaçava cair, e distribuía lições corporativas em portunhol.
– “Essas coisas acontecem”….Quero ver explicar isso na minha reunião. Eu tenho compromisso, meu amigo, compromisso importante. O que eu vou fazer agora? Você vai até a minha reunião dizer que me atrasei por incompetência de vocês?
– O senhor pode reclamar com a gerência.
– Eu já falei com o gerente, meu amigo.
– Então o senhor precisa esperar. Tivemos um problema como um colaborador nosso e…
– Olha aqui, meu amigo – e o dedo em riste – eu não pago para saber de problemas. Eu pago para ter soluções. É assim que funciona na minha empresa.
Sem perceber, o sujeito se tornava o centro das atenções em um hotel tomado de estrangeiros. Não era preciso entender nada de português para captar o que ele dizia.
– Eu vou entrar nessa porta de qualquer jeito.
E investiu contra as duas portas. Dois seguranças foram acionados para conter o sujeito. Todos na fila tinham compromisso, talvez não tão importantes quanto o dele, e tinham fome, talvez não tanto quanto a dele, mas a nossa vontade era amarrá-lo em uma camisa de força e dizer: “Calma, meu caro, assim você não dura até o fim da Copa”.
Quando furou o bloqueio, esperneando, a surpresa: o café estava servido. O sujeito entrou, arrumou de novo a calça do pijama, e olhou ao redor para se certificar de que não havia mais nada impedindo sua vitória diante da vida.
– Incompetentes, dizia, enquanto entupia um pão de forma com presunto e muçarela.
Dava para ver no olho do segurança o que ele seria capaz de fazer com o sujeito se estivesse na rua, e não trabalhando. O funcionário balançou a cabeça e respirou fundo. Parecia acostumado com aquela linguagem, a única que talvez não fizesse questão de absorver.
Olhei o relógio: seis horas e sete minutos. Pela janela, as cortinas venezianas filtravam as primeiras luzes da manhã. Fazia 20 dias que a Copa havia começado, e aquela era a primeira vez que eu senti vergonha diante das visitas.