Sociedade
Injustiça climática
As vítimas dos desastres socioambientais têm cor e classe social, mas o poder público insiste em ignorar esse fato


As águas de março fecharam o verão, mas a “promessa de vida” ficou apenas nos versos de Tom Jobim. Em vez disso, o que vimos foi uma sucessão de tragédias. Eventos climáticos extremos devastaram cidades de Norte a Sul do País, do Amazonas ao Rio Grande do Sul, passando por Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco, Bahia e vários outros estados.
Somente em 2022, ao menos 890 mil pessoas foram atingidas por desastres relacionados às chuvas no Brasil, o maior número em dez anos, segundo dados do Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil. Juntamente com a água vão-se itens básicos de sobrevivência, como roupas, mantimentos, móveis, colchões, documentos, bem como fotos e recordações. A morte, infelizmente, também é uma constante. Restam o luto e a indignação.
Todo esse sofrimento tem cor e classe social. Enquanto uns podem desfrutar da segurança de suas moradias e locais de trabalho, sem ter de enfrentar o caos nas cidades em dias de temporal, os cidadãos que menos contribuem para a crise climática são os mais prejudicados por seus efeitos. Para pessoas negras, pobres e periféricas, os impactos de enchentes, enxurradas e outros eventos climáticos extremos chegam a ser 15 vezes mais severos do que para outros grupos populacionais, segundo um estudo do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas das Nações Unidas, o IPCC. Não é difícil entender a razão. A mesma tempestade pode ser inofensiva ou letal, a depender do local onde a pessoa se encontre.
No inverno de 2022, para citar um exemplo, a região metropolitana do Recife foi palco de uma das piores tragédias do século no estado. As chuvas provocaram 140 mortes, e 84% dos territórios atingidos tinham população majoritariamente negra e de baixa renda, segundo levantamento da Habitat para a Humanidade Brasil. Já em São Sebastião, no Litoral Norte de São Paulo, as dimensões regionais dos desastres ficaram evidentes no sotaque nordestino dos afetados pelas chuvas em 2023, também alvos de xenofobia por parte de agentes do Estado. “A pessoa do governo me perguntou se eu não queria uma passagem de ônibus para voltar para minha terrinha no Nordeste. Eu já moro aqui há 20 anos, trabalhando nas mansões, mas na hora que eu preciso de ajuda, eu sou enxotada”, relatou uma das vítimas à Comitiva Nacional da Missão de Denúncia organizada pelo Fórum Nacional de Reforma Urbana e Campanha Despejo Zero.
O impacto desigual dos desastres socioambientais nas populações negras, pobres e periféricas não é novidade nem coincidência, e sim o resultado de um fenômeno conhecido como racismo ambiental. Isso porque, no Brasil, raça, classe social e outras dimensões socioeconômicas ainda definem onde e como as pessoas moram. E o local e as condições de moradia, por sua vez, estão diretamente relacionados à vulnerabilidade das pessoas a vivenciar um desastre socioambiental. Um estudo inédito da Casa Civil e do Ministério das Cidades mostra um aumento de 136% nas regiões suscetíveis a deslizamentos, enxurradas e enchentes, em relação ao ano de 2012. Atualmente, 1.942 municípios brasileiros possuem moradores em áreas de risco, somando 8,9 milhões de habitantes nessa situação.
Morar em área de risco não é uma escolha, mas a única opção disponível para quem não tem outra alternativa de moradia mais segura, acessível e compatível com suas demandas familiares e condições de sobrevivência. Morar em área de risco, em um país com déficit habitacional de quase 6 milhões de domicílios, é a forma como grupos vulnerabilizados enfrentam os efeitos da negligência do Poder Público diante da demanda histórica por habitação digna. Por essa razão, é um grave equívoco responsabilizar a natureza pelos recorrentes desastres socioambientais.
Além da negligência estatal na oferta de moradia digna à população, cabe destacar as limitações das políticas públicas de adaptação às mudanças climáticas e a ineficiência dos gestores públicos na aplicação dos escassos recursos existentes. O investimento do governo federal em prevenção e resposta a desastres socioambientais caiu expressivamente na última década. Em 2023, foi o mais baixo dos últimos 14 anos, segundo um levantamento da Associação Contas Abertas. O cenário é semelhante na escala municipal.
Pessoas negras e pobres sofrem impactos até 15 vezes mais severos, atesta estudo do IPCC
No Recife, para retomar o exemplo usado anteriormente, os porcentuais de investimento em urbanização de áreas de risco nas gestões do PSB tiveram os níveis mais baixos dos últimos 20 anos, girando em torno de 0,37% do orçamento geral, muito abaixo da média de 0,94% dos anos anteriores, denuncia o vereador Ivan Moraes, do PSOL. Além disso, o dinheiro previsto no orçamento público nem sempre é usado integralmente. Em São Paulo, o prefeito Ricardo Nunes, do MDB, deixou de utilizar 413 milhões de reais dos recursos reservados para Gestão dos Riscos e Promoção da Resiliência a Desastres e Eventos Críticos ao longo de 2023.
Não podemos permitir que essa situação permaneça como está. É urgente que a União, os estados e os municípios atuem para adaptar o ambiente urbano às mudanças climáticas e para reparar os danos dos desastres socioambientais, com a devida atenção às questões de raça, gênero, classe e outras interseccionalidades. O Legislativo e o Judiciário, por sua vez, têm a responsabilidade de acompanhar a atuação do Executivo e acionar mecanismos de exigibilidade de direitos sempre que necessário.
É urgente fortalecer as defesas civis, além de estruturar ou aprimorar comitês e planos de contingenciamento, sistemas de previsão e alarme, resgate, abrigamento e atendimento jurídico, social e de saúde física e mental das pessoas atingidas. Da mesma forma, são necessários esforços para aperfeiçoar as formas de mapeamento e gestão de risco, bem como de urbanização de assentamentos populares consolidados para que a realocação de famílias do seu local de moradia seja o último recurso, e não a regra.
Em todas essas frentes, transparência e participação social precisam ser elementos centrais para que a sociedade civil possa acompanhar e também contribuir com o Poder Público. Somente com justiça climática e habitacional podemos sonhar com cidades mais inclusivas, democráticas e resilientes. •
*Gerente de Incidência Política da ONG Habitat para a Humanidade Brasil.
Publicado na edição n° 1305 de CartaCapital, em 10 de abril de 2024.
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