Política

Indústria de ultraprocessados e ruralistas querem comandar Consea em São Paulo

Presidente da principal associação empresarial dos fabricantes de alimentos foi escolhido para comandar o órgão, que está sem funcionamento

(Foto: iStock)
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Sem funcionar há um ano e meio, o Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável de São Paulo (Consea-SP) retomou atividades com uma decisão incomum: os mais votados para presidente e vice-presidente são, respectivamente, um alto diretor da indústria de ultraprocessados e uma representante do empresariado rural. 

Um novo colegiado deveria ter sido composto em outubro de 2019. No entanto, até outubro de 2020, quando começou o processo de eleição das Comissões de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável (CRSANS) – as comissões regionais do Consea –, a Secretaria de Agricultura e Abastecimento, que tem a primazia na convocação das reuniões, manteve tudo em suspenso. 

Na retomada dos trabalhos, na última quinta-feira (15), os escolhidos para a lista tríplice enviada ao governador surpreenderam. João Dornellas foi o mais votado para o cargo de presidente, enquanto Amanda Araújo Pinto ficou no tipo da escolha para vice-presidente. Ele é o presidente executivo da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia). Ela, Coordenadora do Comitê de Liderança e Juventude da Sociedade Rural Brasileira (SRB). Governo e setores empresariais se uniram para garantir a votação de ambos, em detrimento de candidatos representantes do setor acadêmico, de assentados rurais e de comunidades quilombolas. O resultado e a ata do encontro não estavam publicados no Diário Oficial até o dia 20 de abril.

 

O Consea paulista foi criado em abril de 2003, na esteira da reabertura do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), vinculado à Presidência da República e que funcionou até o primeiro dia do governo de Jair Bolsonaro. Assim como o órgão federal, o colegiado paulista prevê maioria de integrantes da sociedade civil – 24 membros, contra 12 do poder público. 

A eleição de Abia e SRB para o comando do Consea é o ápice de um processo de distorção da participação da sociedade civil. Atualmente, 16 vagas são reservadas aos escolhidos pelas Comissões Regionais de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável, e foi nesse processo que os espaços reservados à participação social passaram, na prática, a operar em favor de corporações e fazendeiros. 

Na eleição dos participantes das CRSANS, realizada entre outubro e dezembro de 2020 (um ano depois da vacância do conselho), uma representante do Conselho de Engenharia de Alimentos (Isabela Shimoyama, de Barretos), por exemplo, foi eleita em Barretos.

O Conselho de Engenharia de Alimentos subsidiou a nota técnica do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) que solicita modificações no Guia Alimentar para a População Brasileira, documento do Ministério da Saúde sobre alimentação adequada e saudável atacado pela indústria. A ABIA e João Dornellas são detratores do Guia, cobrando que o documento deixe de exibir a orientação para que as pessoas evitem ultraprocessados

Histórico

O Consea-SP é resultado de anos de articulação e debates da sociedade civil e, em duas conferências com ampla participação, desenvolveu o Plano Paulista de Segurança Alimentar e Nutricional. Nos últimos anos, pautou a resistência ao projeto de Doria de oferecer a farinata, composto feito a partir de alimentos perto do vencimento, à população em situação de vulnerabilidade social e a alunos da rede pública. 

Monitorou a implantação do Plano Estadual de Redução do Uso de Agrotóxicos e a liberação de novos venenos. Acompanhou o orçamento para promoção de segurança alimentar e nutricional, que define compras dos restaurantes populares Bom Prato, da alimentação escolar e para entidades socioassistenciais conveniadas ao governo estadual. E cobrou a implantação do Plano Paulista de Segurança Alimentar e Nutricional.

Caso os nomes mais votados na lista tríplice sejam confirmados pelo governador Doria, a pauta do conselho será sintonizada aos interesses da indústria alimentícia e do agronegócio. O paradoxo, aqui, é que a ocupação do Consea-SP por interesses privados desnuda as tentativas do governador de São Paulo de se distanciar das políticas do governo Bolsonaro. Não passam de aparência. 

Além disso se estabelece um conflito de interesses: como pode o conselho multissetorial encarregado de propor diretrizes para a política e plano estadual de segurança alimentar ser dirigido por Dornellas, ex-vice-presidente de um fabricante de alimentos (Nestlé do Brasil) e ex-vice-Presidente de Pessoas & Gestão no Grupo NC, holding de grandes empresas farmacêuticas (EMS, Germed, Legrand, Novamed e Novaquímica), empresas de comunicação (NSC -SC), construção Civil (ACS – 3Z) e de energias renováveis?

Doria mantém boas relações com a Abia. Logo no início do mandato, entregou a a Agência Paulista de Promoção de Investimentos e Competitividade (InvestSP) a Wilson Mello, então presidente da associação empresarial. Mello foi vice-presidente de Assuntos Corporativos da BRF, e ocupou o mesmo cargo na Danone antes de assumir a função pública. A InvetSP tem como missão fazer a ponte entre órgãos públicos e investidores, mediante o “fornecimento de informações pontuais e estratégicas sobre as melhores condições para se investir no Estado de São Paulo”.

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