Sociedade

Histórias de angolanas na Maré

O conjunto de favelas na zona norte do Rio se tornou um porto seguro para imigrantes de Angola

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Por Miriane Peregrino e Cesar Abrantes

Licas é o apelido de Guilhermina dos Santos, 43 anos, dona do Bar de Angola, na Vila do Pinheiro. Aos sábados, ela prepara pratos típicos da sua terra natal: sopa de Angola, mufete, funge e calulu. Perguntada se tem algo na Maré que a faz lembrar de Angola, ela é direta: “Tem! Muito angolano!”, responde com um sorriso no rosto.

De fato, desde a década de 1990, há mesmo uma pequena Angola dentro da Maré. Muitos imigrantes angolanos vieram em fuga da guerra civil que durou até 2002. Na época, Licas tinha 18 anos e era casada com um militar.

Quando a guerra estava para explodir, ele enviou a esposa e os filhos para o Brasil. Refugiada, sozinha e com dois filhos pequenos, o primeiro endereço de Licas foi Copacabana – a Copacabana que ela conhecia das imagens da televisão. Morou ali durante cinco anos, mas o custo de vida cada vez mais alto a fez se mudar para Maré, seguindo o conselho de um amigo angolano que morava na favela.

Na Maré, ela sentiu-se em casa, mas não só pelos angolanos: “Além de muito imigrante, acho também que o povo brasileiro é muito acolhedor. Com o povo brasileiro também me sinto como se estivesse em Angola”, afirmou Licas.

Antes de abrir o próprio negócio, Licas trabalhou em um restaurante no Leblon como ajudante de cozinha e, depois, como doméstica na casa de um casal de angolanos no Catete. O marido chegou a vir para o Brasil, mas a relação não deu mais certo e hoje ele vive em Portugal. Nascida em Luanda, Licas sente falta dos avós que a criaram e dos irmãos. Apesar disso, não pretende voltar ao país de origem:

“Ir lá passear pretendo muito, mas morar, não”, afirmou. “Já tenho minha vida aqui no Brasil. Meus filhos estão cá, estudando. Tenho a minha casa. Pegar os seis filhos e voltar pra Angola? Isso não passa na minha cabeça. Se um dia eu for, vou sozinha. Eles têm de ficar aqui estudando. Amanhã quando tiverem possibilidade vão lá”.

Nadja: nascer em Luanda e crescer no Rio de Janeiro

Quem não teve tempo para guardar lembranças da terra natal foi Nadja Nangi Domingos, 27 anos, que chegou aqui ainda criança para morar com o pai e a madrasta. Desde então, Nadja mantém contato com a mãe através da internet e por telefone: “Por enquanto eu penso em voltar para visitar. Não sei se vou morar lá”, diz Nadja.

Aprovada na graduação em Ciências Sociais na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Nadja aguarda o retorno das aulas na universidade: “Tenho uma expectativa muito alta em relação à Uerj. Mesmo estando em greve, sei que é uma das melhores faculdades de Humanas”.

No ano passado, a angolana foi aluna do curso pré-vestibular comunitário do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré): “O Ceasm foi muito importante para minha vida. Abriu muito a minha mente para coisas que eu questionava sem entender o porquê. Depois do Ceasm, eu comecei a compreender o mundo de outra forma”.

Suridia veio estudar no Brasil

Registrada como Francisca Lopes da Silva, a jovem Suridia, 19 anos, está no Brasil há apenas noves meses, e desde o início do ano frequenta o pré-vestibular comunitário do Ceasm.

“Eu vim aqui só para me formar, não para viver permanentemente. Lá tenho mãe, irmãos”, disse Suridia, que mora na Maré com o pai e a madrasta

O pai de Suridia veio para o Brasil há 18 anos, também fugindo dos conflitos de guerra. A primeira vez que seu pai foi a Angola desde que migrou foi ano passado, para buscar a filha. Até então, mantinham contato por telefone e internet. Em Angola, Suridia morava no distrito do Rangel, em Luanda.

“Rangel é um dos musseques. Lá não usamos esse termo de ‘favela’. Musseque é uma área que tem menos saneamento básico, é mais periferia” conta. “A Maré é como se fosse o Rangel. As casas, como são construídas, as feiras, me lembram muito, mas aqui é mais violento. O que eu sabia era que o Brasil é um país pacifico, não tem nada de racismo, já superaram. Mas não é bem assim, há preconceito, há racismo. Lá fora, você vê o Brasil como um paraíso tropical, mas aqui a gente vê que é diferente”.

Suridia afirma que há uma crise financeira muito grande em Angola e que por conta disso seus tios estão em outros países – um em Portugal e outro na Inglaterra. O Brasil foi a opção de seu pai. Segundo ela, na Maré sentiu-se bem-vinda:

“Me sinto bem recebida, mas fora da Maré é um pouquinho estranho. No centro da cidade, eu fui tratar de alguns documentos, entrei nunca loja e a mulher reparou meu dinheiro de uma forma muito estranha. Eu vi que todos pagaram, mas meu dinheiro ela estava reparando se era falso. Aqui na Maré me sinto bem, mas fora daqui sou estrangeira, negra”, observou Suridia.

A vontade de Suridia no momento é cursar Medicina e retornar ao seu país natal: “Ultimamente, a saúde em Angola está muito precária, principalmente por causa do índice elevado de febre amarela”.

Narrativas de outras migrações

O fluxo de imigrantes angolanos para a Maré tem mais de 20 anos. Suas histórias também formam esse conjunto de favelas e se misturam com as dos mareenses. São identidades que se atravessam, formando um novo tempo de migrações.

Segundo dados da Arquidiocese do Rio de Janeiro, os angolanos somam 56,2% dos refugiados no Rio de Janeiro. Em 2015, o Consulado de Angola no Rio de Janeiro abriu um posto de atendimento itinerante para atender os refugiados que vivem na Maré. Atualmente, o posto situa-se na Avenida Nova Iorque, 57/10, em Bonsucesso. Os imigrantes também podem entrar em contato com o posto através do telefone: (021) 3497-4750. 

*Miriane Peregrino e Cesar Abrantes são jornalistas do jornal O Cidadão, um projeto da ONG Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm), no qual este artigo foi originalmente publicado

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